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Entrevista: Mariana Mazzucato sobre o pós-pandemia

Do Política Econômica da Maioria (POEMA), traduzindo entrevista concedida por Mariana Mazzucato ao Irish Times: Confira abaixo entrevista concedida ao Irish Times pela professora e economista Mariana Mazzucato (University College London) sobre o que virá após a pandemia. Cliff Taylor: Na sua opinião, a crise causada pela Covid-19 expôs deficiências na capacidade de atuação estatal? […]

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Foto: Isabella de Madalena / New York Times.

Do Política Econômica da Maioria (POEMA), traduzindo entrevista concedida por Mariana Mazzucato ao Irish Times:

Confira abaixo entrevista concedida ao Irish Times pela professora e economista Mariana Mazzucato (University College London) sobre o que virá após a pandemia.

Cliff Taylor: Na sua opinião, a crise causada pela Covid-19 expôs deficiências na capacidade de atuação estatal?

Mariana Mazzucato: Sim, mas mais do que isso, revelou que a maneira que concebemos o papel do estado nos últimos 50 anos estava totalmente equivocada. Desde os anos 1980, os governos foram orientados a não agir e deixar o setor privado tomar a dianteira das ações e criar as riquezas, promovendo apenas intervenções pontuais orientadas para a correção de eventuais problemas.

O resultado é que os governos nem sempre estão adequadamente preparados e capacitados para lidar com crises, tais como a da Covid-19 ou a emergência climática.

Considerando-se que os governos devem esperar até a ocorrência de um grande choque sistêmico para que intervenham na economia, a preparação para lidar com tais crises é insuficiente. Nesse ínterim, instituições cruciais que prestam e ofertam serviços públicos – como o Sistema de Saúde Público do Reino Unido (NHS), onde houve cortes da ordem de £ 1 bilhão desde 2015 – ficam enfraquecidas.

As medidas de austeridade impostas após a crise financeira de 2008 foram na contramão do investimento necessário para ampliar a capacidade do setor público de forma a prepará-lo para o choque sistêmico seguinte.

Cliff Taylor: Quais as lições aprendidas que podemos utilizar na recuperação pós pandemia?

Mariana Mazzucato: Esta crise, e a recuperação da qual precisamos, nos propicia uma oportunidade de compreender e conceber como fazer o capitalismo de uma forma diferente. Isto requer que repensemos o papel dos governos: ao invés de se limitarem apenas a corrigir os rumos do mercado quando os problemas surgem, os estados deveriam adotar uma postura ativa de modo a moldar e criar mercados para encarar os grandes desafios sociais. Adicionalmente, os governos devem assegurar que parcerias com corporações que envolvam fundos públicos sejam guiadas pelo interesse público, e não pelo lucro.

Quando corporações do setor privado clamam por resgates financeiros junto aos governos, devemos considerar qual futuro queremos e quais inovações são necessárias para atingirmos estes ojetivos, incluindo condições para executar estes resgate voltadas para a defesa do interesse público, e não apenas do privado.

Isto garantirá a direção do caminho que queremos percorrer – verde, sustentável e igualitário. Quando as condicionalidades são bem sucedidas, elas colocam os interesses das corporações alinhados aos da sociedade. No curto prazo, o foco deve ser a preservação das relações de trabalho durante a crise e a manutenção da capacidade produtiva da economia, ao mesmo tempo que a transferência de fundos para o setor financeiro e para remuneração de executivos deve ser evitada. No longo prazo, trata-se de garantir que os modelos de negócio sejam voltados a um crescimento mais inclusivo e sustentável.

Cliff Taylor: Os estados nacionais têm capacidade de definir os termos da recuperação econômica de forma que esta seja mais verde e sustentável, ou por ora trata-se de “apagar o incêndio” decorrente da Covid-19?

Mariana Mazzucato: Os estados nacionais podem e devem adotar uma visão de liderança de longo prazo, evitando a “tirania da urgência” e a limitação de apenas “combater incêndios”. Pela primeira vez em décadas, os governos nacionais têm plena vantagem nas negociações entre o setor público e privado, então é hora de usar essa vantagem!

Um exemplo claro disso está em curso no que diz respeito à agenda “verde” e sustentável, acerca das condicionalidades relativas à assistência financeira por parte dos estados nacionais; ao se planejarem as intervenções de grande escala, os governos deveriam focar em condicionalidades favoráveis à agenda do “green new deal” de redução das emissões de carbono ao passo que investem em contratação de mão-de-obra.

O governo francês colocou condições ao empréstimo que propôs à Air France: reduzir as emissões de dióxido de carbono nos voos domésticos em 50% até 2024, e encerrar voos domésticos que concorrem com trechos ferroviários; as condições impostas à Austrian Airlines incluem a garantia de postos de trabalho, além dos compromissos com a agenda ambiental; e as condições impostas pela Lei de Ajuda, Alívio e Segurança Econômica da Covid-19 nos EUA (US CARES Act) incluem limites nas compensações aos funcionários mais bem pagos das companhias de aviação, e a manutenção dos empregos e salários integrais.

A Senadora dos EUA Elizabete Warren também clamou pelo estabelecimento de condições para o resgate finaneiro, incluindo a elevação dos salários mínimos, representação de trabalhadores nos conselhos, imposição de restrições prolongadas ao pagamento de dividendos, à recompra de ações e ao pagamento de bonus a CEOs. Quando for importante e possível, os governos nacionais devem impor condições para avançar em suas agendas ambiciosas de longo prazo, dos pontos de vista ambiental e social.

A retomada da economia não deve se limitar a uma volta ao “normal” no qual nos encontrávamos antes da pandemia: este “normal” era o crescimento econômico baseado no setor financeiro e endividamento, que falhou ao não atribuir o valor devido aos trabalhadores “chave” e aos serviços públicos essenciais nos quais confiamos; do crescimento dramático da desigualdade entre a maioria da população e CEOs e demais proprietários de capital; e em muitos lugares, de austeridade e terceirização sistemática do setor público levando a um quadro de desinvestimento e contração dos serviços públicos, que se tornaram portanto incapazes de fazer investimentos cruciais dos quais dependem a sociedade.

Ao invés disso, a recuperação demanda uma renovação econômica em larga escala, na qual utilizamos as ferramentas disponíveis ao governo – desde os investimentos até as compras governamentais, passando por criação de recompensas – de forma a colocar que o estado dê as regras do jogo em direção a um crescimento econômico igualitário, verde e sustentável.

Cliff Taylor: Há algum risco de que as coisas vão simplesmente voltar a ser feitas como antes ou essa crise nos oferece uma oportunidade de repensar algumas áreas? Esse recomeço sob novas bases requer novas “culturas” nacionais – novas maneiras do estado e do setor privado trabalharem, novos objetivos nacionais, etc.?

Mariana Mazzucato: O trabalho que tenho desenvolvido no instituto que fundei e dirijo na Universidade College London, o instituto pela Inovação e Interesse público, há tempos se concentra na abordagem relativa ao papel dos governos nacionais e na orientação das ambições de longo prazo e inter-setoriais (e, no governo, de abordagens inter-departamentais) aos desafios da sociedade – “missões” que dão a chance de governos moldarem os mercados, e não apenas corrigirem suas falhas.

Temos trabalhado com diversos governos (Escócia e África do Sul por exemplo) para elaborar planos de inovação orientados por missões específicas. Re-orientar a economia de uma forma verde e de forma a combater o aquecimento global não deve ser uma missão governamental por razões meramente morais. Também não é apenas porque este futuro proverá a todos – ricos e pobres, um planeta melhor para viver. É porque não fazer isso implica em um elevado grau de risco.

Há alguns meses atrás, os noticiários estiveram repletos de imagens de bombeiros extenuados, e não de prestadores de serviços de saúde sobrecarregados: nós pensávamos que este seria o assunto principal de 2020.

A crise climática deixará suas marcas em 2020 quando olharmos para o passado em perspectiva, e deixará ao longo do próximo século; a Covid-19 é um produto da degradação ambiental, e vemos novas crises ligadas à questão climática no horizonte – o Ciclone Amphan que está atualmente sobre Índia e Bangladesh em meio à pandemia, e tais eventos climáticos estão se tornando cada vez mais intensos como consequência das mudanças climáticas.

A pandemia atual é um alerta que não podemos nos dar ao luxo de ignorar para depredar a natureza da forma que estamos fazendo.

Investidores de longo prazo já estão mudando radicalmente suas definições de risco; e definições de métricas de investimentos ambientais, sociais e de governança são de importância crucial.

Ao mesmo tempo em que a pandemia apresenta um risco aos setores mais duramente afetados, e por si só representa a materialidade do risco ambiental, o mercado do petróleo está em colapso, e os ativos ociosos estão se tornando realidades de curto prazo para os investidores. Precisamos entender que não vivemos apenas em uma era de risco, mas em uma de incerteza, e devemos nos planejar adequadamente para uma renovação dos negócios e do Estado – negando a tentação de retomar os negócios e a direção estatal como se fazia antes da pandemia.

Cliff Taylor: De onde virá o dinheiro para pagar pela recuperação e reconstrução? Um estado maior implica necessariamente em mais impostos?

Mariana Mazzucato: o dinheiro é uma tecnologia social e não um recurso escasso como o público foi ensinado a acreditar. A incapacidade de lidar com a tecnologia monetária existente para se recuperar da grande crise financeira de 2008 é emblemática da nossa falta de capacidade de usar as tecnologias em nosso favor de forma a impulsionar uma transição mais vigorosa para uma economia mais “verde” e sustentável.

A riqueza de nossas nações advém de nossa habilidade de colocar os recursos disponíveis para resolver nossos problemas e ampliar a forma pela qual os usamos atavés da inovação e de relações mais benéficas entre os setores público e privado. Dinheiro é um instrumento vital para mobilizar nosso potencial comum.

Nós devemos portanto lidar com o desafio imposto pela Covid-19 com uma nova abordagem sobre os bancos de investimento estatais e um compromisso fiscal geral de fazer “o que for preciso” – e garantir que a orientação dos gastos públicos tenha como norte as missões que resolvam nossos desafios socio-ambientais ao invés de restaurar o status quo.

Restaurar o status quo insustentável é a nossa grande ameaça atual. Obviamente, a zona do Euro enfrenta seus próprios desafios econômicos na medida em que políticas fiscais e monetárias foram deixadas de lado apenas para serem parcialmente reintegradas por meio das políticas de afrouxamento quantitativo levadas a cabo pelo Banco Central Europeu. Há uma grande demanda por mecanismos institucionais adicionais que possam colocar a zona do euro no mesmo caminho fiscal de outras economias desenvolvidas.

Quando Roosevelt lançou o abrangente pacote de investimentos conhecido por “New Deal”, ele não foi em busca do dinheiro. O cerne da macroeconomia reside no fato de que o gasto é igual à renda, e portanto gasto gera renda. Quando o setor privado não gasta, governos devem fazê-lo ou devem reduzir impostos para estimular gastos.

Elevar os impostos de imediato pode resultar em fracasso. Ao invés de se perguntar de onde vem o dinheiro, deveríamos nos perguntar de onde virão os recursos físicos e intelectuais.

Necessitamos urgentemente de uma recuperação que transforme as estruturas econômicas que limitam nossa capacidade de decisão em tempos normais. Por que eu deveria comprar um veículo elétrico se não tenho nenhuma certeza de que encontrarei uma estação de recarga rápida? Por que compraria um veículo elétrico se eu tenho que abastecê-lo com energia elétrica gerada pela queima de carvão ou gás?

Tal transformação não deve ser encarada como um grande custo, mas sim como um investimento num futuro resiliente, sustentável, e mais eficiente em termos de aplicação de recursos. Estamos muito atrasados nessa jornada, mas os tempos atuais são uma grande oportunidade de romper com a dependência das ideias que até agora nos colocaram neste atoleiro.

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Comentários

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Paulo

15/07/2020 - 18h10

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