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Tiago Medeiros: a abertura da história, as instituições e o Brasil de Bolsonaro

Temos a honra de publicar em primeira mão esta importante contribuição ao debate político e institucional, do professor Dr. Tiago Medeiros, do Instituto Federal da Bahia. A abertura da história, as instituições e o Brasil de Bolsonaro Por Prof. Dr. Tiago Medeiros, do Instituto Federal da Bahia A abertura da história A segunda década do […]

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Sergio Lima / AFP

Temos a honra de publicar em primeira mão esta importante contribuição ao debate político e institucional, do professor Dr. Tiago Medeiros, do Instituto Federal da Bahia.

A abertura da história, as instituições e o Brasil de Bolsonaro

Por Prof. Dr. Tiago Medeiros, do Instituto Federal da Bahia

A abertura da história

A segunda década do Século XXI encerra-se no Brasil com a mutação gradativa de conjunturas que não indicam um salto histórico consumado – estamos, em vez disso, ainda, entre o pulo e a aterrissagem. Sem dúvida, um dos fenômenos de maior relevância, porque é social, é cultural e é político, e que enreda distintos componentes conjunturais de nosso tempo, é o bolsonarismo. Abdicando do exercício de refletir sobre o fenômeno enquanto tal, tentarei enxergá-lo do ponto de vista de seu impacto sobre a relação da sociedade brasileira com as suas instituições, prisma que requer um esclarecimento sobre a relação mais profunda que há entre elas e a história.

Entre os pensadores sociais e políticos modernos e contemporâneos é notável a predominância de abordagens sobre a história que a concebem enquanto fechada, ou enquanto aberta apenas na maquiagem. É fechada entre os que entendem que os esquemas básicos da vida social, que variam no tempo, obedecem a uma lógica que explica essa variedade sem dar qualquer vazão a surpresas disruptivas. Eles dividem-se entre os profetas de um desaguar vindouro, mas não necessariamente longínquo, e os que celebram o fim da história no presente como o resultado da confluência de fatores exitosos. Um exemplo contundente desses pensadores são os historicistas de distintos matizes que floresceram principalmente no século XIX.

Aqueles para quem a abertura da história é parcial ou sem substância, mas cosmeticamente eloquente, são os que abdicam de encontrar uma lógica profunda subjacente à dinâmica social e se contentam em reconhecer a contingência dos arranjos existentes dadas as suas formações randômicas, sem extrair, contudo, dessas mesmas abordagens, uma lição objetiva sobre o futuro – que pudesse se traduzir em uma agenda normativa ou programática. Um exemplo desses intelectuais são os ligados ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo; outro, são os positivistas frequentes na academia dos países anglófonos.

O quadro ilustra que, entre um amanhã determinado e um amanhã evitado, a ideia de que a história é aberta oscila entre a inviabilidade e a fragilidade. Essa oscilação encontra guarida principalmente entre os pensadores engajados de viés político e moral progressista que anunciam utopias respaldadas por ambiciosos projetos teóricos, ou distopias, para as quais as tensões engendradas na complexidade do presente são profusas, degeneradoras e incompatíveis com a imagem de um futuro em que as sociedades se redimissem em pacotes simplificados de vínculos. Essa divisão de trabalho entre pensadores progressistas tem sido parceira do distanciamento que eles ainda cultivam em relação às instituições enquanto tema de ofício – e o que os faz pensá-las como epifenômenos dos movimentos autônomos da história ou dispositivos de poder e dominação pelos quais as sociedades conservam os seus esquemas contemporâneos de hierarquias, divisões e injustiças. Utopias e distopias revelam-se contraproducentes para a tarefa de compreender o que é e o que pode ser a relação entre a sociedade brasileira e as suas instituições.

Os problemas fundamentais das instituições;

A abertura da história, se levada a sério, sugere que as sociedades não encontram esquemas definitivos que resistam ao tempo, e insiste na possibilidade do novo, não como mera potência atualizada, mas como realidade da qual o possível é um reflexo. E a mudança que confirma a abertura da história é invisível fora das instituições.

As sociedades modernas, entre as quais a brasileira, revelam experienciar uma alternância simples de problemas institucionais fundamentais cujas soluções constituem as diretrizes que vêm a sugerir as feições imprevistas de seu futuro. Tenho chamado esses dois problemas de desinstitucionalização e hiperinstitucionalização (1). O primeiro é o reconhecimento da ameaça de inviabilização dos acordos que uma conjuntura histórica imprime aos laços institucionais (como no exemplo clássico de Hobbes na hipótese da guerra). O segundo é a constatação da asfixia provocada pelo enrijecimento das instituições vigentes contra a vontade dos indivíduos concretos (como no exemplo também clássico de Marx ao examinar e criticar a Filosofia do Direito, de Hegel).

As soluções para ambos indicam uma divisão entre os pensadores que não seria de todo incorreta se qualificada como entre conservadores e progressistas, mas, como essa nomenclatura é melhor aplicada ao campo da política e ao da moral, tenho proposto que os chamemos, respectivamente, de institucionalistas imanentistas e institucionalistas transcendentistas. Mesmo porque, progressistas na moral e na política podem ser conservadores nas instituições, e conservadores na moral e na política podem ser arautos da mudança institucional.

A solução para a desinstitucionalização é imanentista. Consiste em encontrar o princípio, o eixo, o fundamento, para a requalificação do laço institucional, passando, geralmente, pela tese de que as instituições existem para produzir a estabilidade necessária à – e, muitas vezes, ausente da – experiência humana em sociedade. Exemplos variados dessa solução são encontrados na filosofia das instituições de Arnold Gehlen, nas sociologias institucionalistas do século XX e até mesmo na teoria da justiça de John Rawls.

A solução para a hiperinstitucionalização é transcendentista: encontrar o elemento que elucida por que o ser humano ultrapassa as suas circunstâncias enquanto seu criador, concebendo as instituições como entidades plásticas dotadas de significações e rotinas que não têm valor em si, senão espelhado na vontade. Exemplos disso são a filosofia social de Cornelius Castoriadis e, de um modo geral, a obra de Roberto Mangabeira Unger.

O Brasil nos tempos de Bolsonaro e as instituições;

Ora, no Brasil, a elite pensante, parcialmente nas Universidades e integralmente na grande mídia, simpatizou e simpatiza com a solução imanentista, tendendo a supor que o problema do Brasil é a baixa qualidade da democracia medida pela baixa qualidade dos quadros políticos diplomados por um eleitorado de baixa qualidade no exercício de cidadania. Essa soma de baixezas constitui a maneira como a classe formadora de opinião no país manifesta uma visão imanentista da institucionalidade. A ideia é que as instituições são boas quando rígidas em seu funcionamento, intransigentes em seus protocolos, moralizadoras e eficientes em seus fins. E esse ideal seria alcançado apenas se elas operassem a despeito do bárbaro agrupamento de políticos profissionais eleitos pelas massas incultas. Uma operação similar à de um piloto automático que guia as engrenagens da máquina sem a instabilidade das desviantes mãos humanas.

A corrente de opinião bolsonarista articula-se pela narrativa de que há uma aliança, ou um conluio, entre aquelas elites – cúmplices que seriam em um mesmo esquema de tramoias com vistas à autopreservação no poder. As instituições corresponderiam à vontade dessas elites e seriam por elas operadas em favor de si mesmas em desprezo ou em hostilidade ao povo – discurso não tão distinto do que já foi o discurso varguista, janguista, brizolista e até petista, mas agora com o trunfo de um líder que, pelo perfil combativo, aparenta não ceder em absolutamente nada à composição sistêmica das elites, além de ser alguém que nunca demonstrou pretensões de governar para todos.

Ao atacar as elites e as instituições como dispositivos de um mesmo e perverso sistema, a narrativa bolsonarista faz aflorar um ideário oposto ao da imprensa e da academia no que diz respeito à agenda de orientação da militância de apoiadores do presidente, a saber, uma agenda de talho transcendentista – que aposta na plasticidade e na mudança institucional, traduzida na abreviação do laço entre a vontade popular e o poder constituído. De repente, as bravatas de Bolsonaro afinaram-se ao médio nível de consciência popular quanto à dinâmica interna da vida política e da cidadania, e o Brasil começou a contemplar o soerguimento de uma demanda oculta pela moratória contra a inércia institucional (inércia que é um dos reveses possíveis do institucionalismo imanentista, porque a defesa consistente da estabilidade institucional costuma vir acompanhada da justificação da inelasticidade e da imobilidade dos agentes políticos em função da estrutura vigente de instituições). Na resistência inevitável aos ataques do presidente, as instituições, aos olhos da massa que quer quebrar a inércia, como que confirmam o discurso bolsonarista e renovam a popularidade de sua fatia de apoiadores empedernidos.

Mas a mensagem que Bolsonaro transmitiu, de quebra da inércia institucional, é a da possibilidade de fazer valer a vontade popular através de um presidencialismo plebiscitário, como o pensa o cientista político Carlos Sávio Teixeira. Isso deve ser motivo para reenergizar o pensamento progressista em seu desafio de radicalizar a ideia de que a história é aberta. Não é que o pensamento transcendentista será sempre o melhor para o Brasil, que o problema da inércia institucional enquanto manifestação da hiperinstitucionalização será o fundamento de problemas nacionais em qualquer circunstância, mas, sim, que ele, na política, é o mais urgente, agora. Não convém deixa-lo à mercê do monopólio da narrativa bolsonaeista, que imprime sobre as instituições políticas um descrédito e um descaso quase mussolinistas.

Entender que a história é aberta implica em aceitar o compromisso de refazer a sociedade brasileira pela via das recomposições de nossos laços institucionais, principalmente através da inovação e na construção das instituições do poder e da informação. Bolsonaro não precisa ser lido como o buraco negro da história contemporânea, mesmo para os progressistas, podendo ser interpretado como uma janela de oportunidades, pois que revela uma demanda social legítima e irrealizada: a que aproxima os anseios populares de canais para a efetivação dos quereres. Isso não será consumado senão através das instituições.

(1) Remeto o leitor à minha tese de doutorado Raízes da Institucionalidade que pode ser acessada pelo portal do PPG de Filosofia da UFBA ou em solicitação pelo email: secretariappgf@ufba.br.

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Comentários

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Paulo

15/12/2020 - 19h23

Ótimo texto. Mas, se eu entendi bem a conclusão, o autor defende o “transcendentismo”, porém sob controle da esquerda. “A janela de oportunidades” dada por Bolsonaro e seu séquito deveria ser instrumentalizada, politicamente, para permitir o diálogo com os anseios “legítimos” de mudança, presentes entre a população, mas que se canalizariam, por essa via, para as mãos dos “progressistas”. Vejo a mesma linha autoritária de Bolsonaro, presente nesse pensamento, com viés trocado, quanto aos agentes condutores da política. Sendo assim, sou “imanentista”…


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