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Mídia adota discurso privatista e depreciativo sobre educação pública

Pesquisadora analisou mais de mil textos sobre ensino básico publicados em jornal paulistano Ao analisar 1.197 artigos de opinião e 145 editoriais publicados pelo jornal Folha de S.Paulo entre 2005 e 2020, a pesquisadora Thais Rodrigues Marin se surpreendeu: encontrou nos textos uma postura reiterada de desqualificação do sistema brasileiro de educação pública, em ataques […]

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Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti

Pesquisadora analisou mais de mil textos sobre ensino básico publicados em jornal paulistano

Ao analisar 1.197 artigos de opinião e 145 editoriais publicados pelo jornal Folha de S.Paulo entre 2005 e 2020, a pesquisadora Thais Rodrigues Marin se surpreendeu: encontrou nos textos uma postura reiterada de desqualificação do sistema brasileiro de educação pública, em ataques que atingiram também os professores dessa rede. A pesquisadora já esperava, por conta do recorte que fez para realizar seu doutorado, na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, deparar-se com essa insistente narrativa privatista. Marin, contudo, não previu o tom dos textos, um dos elementos a confirmar sua conclusão sobre o papel da grande imprensa brasileira na disseminação desse discurso em relação à educação básica no país.

“Embora já soubesse que encontraria falas dizendo que políticas educacionais das quais participam atores não estatais são melhores ou mais eficientes, porque essa já era a hipótese da minha pesquisa, eu me surpreendi com o modo como isso apareceu nos textos. São recorrentes as expressões exageradamente negativas, catastróficas e mesmo grosseiras para caracterizar a educação pública, tais como ‘tragédia’, ‘desastre’, ‘fracasso’ e ‘mediocridade’. Fiquei impressionada, pois não esperava encontrar esse tipo de registro em um dos veículos mais importantes do país, principalmente nos editoriais, porque esses deveriam abordar o debate político de modo mais qualificado e menos espetacularizado.”

Orientada pela professora Theresa Maria de Freitas Adrião, que há mais de 20 anos estuda a privatização da educação e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (Greppe), Marin analisou um volume expressivo de artigos e editoriais publicados ao longo de 16 anos. Seu objetivo: localizar o e dar materialidade ao que a tese qualifica como “discurso da privatização da educação básica”, que adquiriu caráter de senso comum e sobre o qual, até então não havia uma pesquisa aprofundada no país.

Seis narrativas que se repetem

Marin utilizou uma metodologia de análise de conteúdo categorial, com a qual definiu temáticas para classificar os textos, identificando seis diferentes formulações discursivas que se repetiram ao longo do período. Cada categoria corresponde a um tipo de narrativa, direta ou indiretamente, favorável à privatização da educação. A primeira delas – “a mais expressiva”, nas palavras da pesquisadora – é a da desqualificação da educação pública de modo geral no Brasil e a da consequente necessidade de reformá-la. “Esse ideário de crise da má qualidade respalda as iniciativas de reforma da educação, ou reforma empresarial da educação, que temos hoje.”

A pesquisadora Thais Rodrigues Marin: localizando o “discurso da privatização da educação básica” | Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti

A segunda narrativa, a do financiamento, defende não faltar recursos para a educação básica, mas faltar eficiência na gestão do Estado. A terceira, a de desqualificação dos professores da escola pública, descreve-os como acomodados, malformados e corporativistas. “Esse discurso coloca o professor como inimigo e nega sua condição de trabalhador.”

A avaliação educacional relacionada a mecanismos de vigilância do trabalho do professor e de mensuração em larga escala configura a quarta narrativa identificada na pesquisa. “Isso é reflexo do modo de funcionamento corporativo e meritocrático, de mensurar o trabalho com métricas, para premiar ou punir. A qualidade da educação passa a significar posições em rankings, e o professor é responsabilizado por esses resultados, desconsiderando-se problemas estruturais que também afetam o processo educativo”, explica Marin.

A narrativa das parcerias educacionais, recorrente nos artigos, surge como a quinta identificada pela pesquisadora. “Isso tem relação direta com a privatização e fica até mais fácil de entender, porque coloca os atores não estatais como supostamente mais capazes para oferecer soluções e diz como eles são importantes para que a política educacional seja de melhor qualidade.”

A sexta e última narrativa descrita pela pesquisadora trata das finalidades educacionais. “Essa narrativa resume-se a colocar na conta da escola a superação das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, defendendo que a suposta má qualidade da educação seria a causa da perpetuação de desigualdades e do arrefecimento da economia. Isso é a teoria do capital humano alinhada ao discurso neoliberal”, afirma Marin.

Endossar, legitimar e naturalizar

As narrativas ajudam a endossar, legitimar e consolidar uma opinião pública favorável aos processos e práticas privatistas, avalia a autora da tese. “Com a repetição, essas narrativas vão se tornando hegemônicas, vão se naturalizando, como se fosse algo dado. Essa é a grande história que se conta sobre a educação básica pública brasileira e que ganha esse caráter de verdade, de prova concreta. Em editoriais, que seriam a voz do próprio jornal, ou ao dar espaço para autores de artigos, a mídia não está só relatando a história. Ela transforma-se em um ator que participa dessa história.”

Para Marin, a maior contribuição da sua pesquisa foi conseguir localizar o discurso privatista nessas narrativas divulgadas pelos meios de comunicação “para poder desconstruir essa ideia e mostrar que esse é um discurso ideológico, que isso não é uma verdade incontestável”. Na disputa política em torno do assunto, a pesquisa realizada na Unicamp ajuda a levantar dados concretos, acredita a pesquisadora. “Porque a disputa política é também discursiva, sobre os modos de se pensar a realidade. A gente não pode esquecer esse caráter ideológico. A linguagem não é neutra nunca, menos ainda ao pautar a agenda política.”

Em sua conclusão, Marin defende que essa disputa não se trava apenas no debate sobre a alocação de recursos ou instrumentos materiais, mas também no embate acerca do conceito de educação pública, em torno de determinar aquilo que é ou não válido no debate educacional.

“A tese é uma importante e inovadora fonte de informação para o entendimento de um fenômeno hoje global. Ela desmistifica o modus operandi de seus defensores: a generalização de narrativas em defesa da privatização da educação que se apoiam em aparentes ‘evidências’”, diz Adrião.

Heranças históricas

A educação escolar no Brasil já nasceu privatizada, e isso por intermédio da Igreja Católica, especificamente a Companhia de Jesus. “Sempre houve um ator não estatal na política educacional brasileira”, pontua Marin.

Os processos de defesa da chamada privatização da educação, no entanto, começaram na década de 1990. Segundo a pesquisadora, o conceito de privatização é um fenômeno contemporâneo no qual se faz a transferência de recursos ou de responsabilidades do Estado para atores não estatais, instituindo políticas moldadas segundo os interesses desses atores.

“Desde os anos 90, o Estado brasileiro vem sofrendo um processo de reestruturação e enxugamento e vem se abrindo a novos atores, que passam a participar também da política educacional”, descreve.

Segundo Marin, sua orientadora identifica entre esses novos atores as corporações transnacionais, os fundos de investimento de risco, a filantropia de risco (institutos, fundações que “são como braços sociais de empresas ou de famílias, que hoje no Brasil são os mais atuantes”) e os grupos de advocacy, redes de empresários e entidades do terceiro setor formadas com o objetivo de influenciar os rumos da política educacional. Marin cita como exemplo dessas entidades a Parceiros da Educação e a Todos Pela Educação.

“Há fundações e institutos, por exemplo, com muito aporte financeiro para atuar na educação. Em algumas situações, com uma capacidade maior do que a de governos locais”, diz a pesquisadora. “No contexto global, a filantropia de risco entende a política, nesse caso a educacional, como um investimento social. Eles querem obter resultados mensuráveis e algum retorno institucional, seja para a imagem da entidade, seja, no limite, na forma de lucro.”

Grupo mapeia atores privados

“No âmbito da produção científica, a contraposição às narrativas privatistas da educação pode e deve ser feita por meio da realização de pesquisas com densidade teórica e empírica, como a de Thaís Marin”, afirma Adrião. A pesquisa indicou haver um discurso hegemônico sobre a privatização, diz a professora. E esse é o tema central dos trabalhos realizados pelo Greppe, grupo que inclui docentes, pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação e educadores de três universidades públicas: Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A professora Theresa Maria de Freitas Adrião, coordenadora do Greppe: por um “jornalismo mais informado e menos ideológico” | Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti

O Greppe dispõe de levantamentos e mapeamentos de todo o Brasil sobre as políticas estaduais de educação e a ingerência de atores privados nessas políticas, especialmente a partir de 2005, depois da Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 – 2001. A partir dessa lei, ficou estabelecido um limite de até 60% dos gastos dos governos estaduais com as folhas salariais, o que comprometeu políticas para a educação pública, favoreceu a transferência de atividades estatais para o setor privado e limitou os investimentos na valorização de profissionais da educação. As pesquisas do Greppe indicam que organizações privadas responsáveis por disseminar o discurso de desqualificação da escola pública influenciam as políticas educacionais das redes estaduais e municipais de ensino, dificultando a construção de uma política educacional focada no ensino público de qualidade.

Segundo a análise de Adrião, nos últimos anos houve um acirramento do reacionarismo. “O que é estatal e tem caráter universal, ou seja, o que é democrático e não discriminatório, como é a concepção de educação pública no Brasil, passou a ser desqualificado.” A docente também acredita ser importante que as universidades e as instituições científicas divulguem suas pesquisas e disputem pautas junto aos meios de comunicação de massa. “É preciso que haja uma ampliação da presença de pesquisadores como fontes para um jornalismo mais informado e menos ideológico”, defende a professora.

Além da formação de pesquisadores, o Greppe também atua junto a entidades da sociedade civil vinculadas à defesa da educação pública e à difusão do conhecimento científico construído com base em pesquisas. Em 2019, o grupo criou a Rede Latino-Americana e Africana de Pesquisadores em Privatização da Educação (Relaappe), entidade que hoje coordena.

Publicado originalmente pelo Jornal da Unicamp

Por Adriana Vilar de Menezes

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