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O golpe, visto do futuro

  (Imagem da animação Uma História de Amor e Fúria, de 2011. Tirada do Blog de Cinema, no Diário do Nordeste). Arpeggio – coluna política diária – 07/11/2016 Por Miguel do Rosário Queridas leitoras, segue abaixo mais um trecho exclusivo de Vana, o romance sobre o golpe que estou escrevendo. O trecho abaixo é uma […]

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(Imagem da animação Uma História de Amor e Fúria, de 2011. Tirada do Blog de Cinema, no Diário do Nordeste).

Arpeggio – coluna política diária – 07/11/2016

Por Miguel do Rosário

Queridas leitoras, segue abaixo mais um trecho exclusivo de Vana, o romance sobre o golpe que estou escrevendo.

O trecho abaixo é uma parte do primeiro capítulo, que é um distopia futurista. Passa-se em 2046. Vana, que em 2016 era uma jovem universitária, agora é uma atraente mulher de 50 anos, recentemente de volta ao Brasil depois de algumas décadas exiladas no exterior.

O livro está em fase de finalização. Meu plano é lançá-lo ao final deste mês.

***

(…)

Desde o golpe de 2016, que havia derrubado a presidenta Dilma Rousseff, a história brasileira tinha vivido três ciclos políticos. O primeiro ciclo durou até pouco antes de 2030: começa com a chegada ao poder de Michel Temer, a destruição das grandes empresas estratégicas, privatizações em massa, fim de eleição direta para presidente da república. O segundo é mais curto. Inicia-se ao final de 2028, com a volta das diretas e a eleição de um presidente progressista, Nelson Murad.

Murad governa por cinco anos, mas é derrubado no primeiro ano após sua reeleição – pelo mesmo modus operandi já usado em 2016, contra Dilma, e conduzido pelas mesmas organizações.

O terceiro ciclo tem início em 2033, com o golpe (o segundo em 17 anos) que derrubou o governo eleito, e se estende até os dias de hoje.

Por razões que não cabe explicar agora, o Brasil era dominado, desde meados dos anos 20 (anos 2020, que fique bem entendido), por duas grandes organizações: a Hermes e a Millenium.

Hermes representava a burocracia, a Millenium, a mídia e a classe política.

Policiais, juízes, desembargadores, auditores da receita, um ou outro professor universitário, a elite do funcionalismo, em suma, reunia-se sob a Hermes, a organização que indicava os chefes do Executivo desde a ascensão de Michel Temer, o primeiro fantoche de uma longa lista que vinha até nossos dias.

Quer dizer, em 2016, a Hermes ainda não estava oficialmente constituída, mas já havia uma grande organicidade nas decisões da burocracia, como se viu no jogo de cartas marcadas que foi o impeachment da presidenta Dilma. A organização seria inaugurada oficialmente em 2021, já em plena ditadura.

Competindo com a Hermes na disputa pelo poder, a Millenium, era composta por barões da mídia nacional, alguns bilionários domésticos e um pool de corporações multinacionais lideradas pela Blackrock, o maior fundo de investimentos do mundo. Ela também foi criada no início dos anos 20, mas igualmente já existia um esboço de organização durante o golpe de 2016.

As duas organizações tinham um acordo entre si, uma espécie de divisão de tarefas.

A Hermes caberia o controle do Estado, através de sua influência na elite do serviço público, em especial nas esferas jurídicas e policiais. Como recompensa, juízes, promotores e delegados receberiam os maiores salários do planeta, em termos proporcionais, e a Hermes indicaria o presidente da república, ao qual blindaria contra qualquer processo judicial.

A Millenium era o braço financeiro e midiático do consórcio. Manteria o controle da opinião pública, e patrocinaria, com dinheiro e mídia, a eleição dos parlamentares certos. A recompensa era óbvia. Leis favoráveis seriam aprovadas e sancionadas, tanto para as empresas de mídia quanto para as multinacionais que operavam no Brasil, e cujo espaço tinha crescido muito após a limpeza de terreno promovida pela Lava Jato, primeira grande operação em parceria das forças em que gerariam, alguns anos depois, a Hermes e a Millenium.

O acordo entre as duas organizações se manteve estável por muitos anos. A eleição de Murad em 2028 e seus cinco anos de governo popular são apenas uma pausa democrática entre períodos autoritários.

Em 2036, porém, o acordo começara a ruir. Rompendo a tradição e desequilibrando a balança de poder, a Millenium rechaça o candidato à presidente da república defendido pela Hermes e persuade uma maioria de ocasião no senado a eleger um outro, mais ligado a seus interesses.

Na verdade, o acordo entre as duas organizações sempre tivera pontos de tensão, que eram no entanto ignorados em nome do objetivo em comum: manter a ordem, coibir protestos, evitar qualquer mudança no sistema político.

Dois fatores afetaram o equilíbrio de poder entre elas, contribuindo decisivamente para o aumento das divergências. O primeiro foi o que ficou conhecido como o Grande Vazamento, em junho de 2039. Um grupo de hackers de várias nacionalidades havia conseguido desenvolver um super script que derrubou, por alguns dias, todos os sigilos e sistemas de segurança do mundo.

Contas bancárias ilegais, despesas militares secretas, sistemas de espionagem, fortunas ocultas, esquemas de corrupção, tudo veio à tôna bruscamente. Corporações e governos conseguiram, em poucos dias, implementar criptografias novas para proteger seus segredos, mas era tarde demais. O mundo veio abaixo com a revelação de tantas conspirações sujas. Representantes políticos, juízes, empresários, donos de canais de TV, pessoas públicas do mundo inteiro foram desmascaradas.

Como era de se esperar, revoltas populares, que já não tinham sido pequenas nos últimos dez anos, multiplicaram-se, em tamanho e frequência. No Brasil, onde a mídia exercia um poder sem paralelo no resto do mundo, aconteceram, pela primeira vez em nossa história, imensas manifestações contra a concentração dos meios de comunicação. Um fator em especial contribuiu para isso: os vazamentos tinham trazido à tôna documentos que provavam o papel das oligarquias midiáticas nas conspirações que geraram o golpe de 16, marco primeiro da ditadura que vigorava até o momento.

O lado irônico do vazamento é que foram também divulgados documentos internos das organizações, inclusive alguns onde estas conspiravam uma contra a outra.

Os vazamentos não foram suficientes para derrubar o regime, porque a desmoralização era tão abrangente que ganhou corpo o sentimento – um tanto artificial, plantado pela mídia, é verdade – de que era preciso promover uma ampla anistia. E assim o fizeram. Criminosos de todos os tipos foram perdoados e o sistema conseguiu resistir à tsunami de revelações constrangedoras. Claro que o fato do governo ter desenvolvido inúmeros instrumentos autoritários, e a imprensa corporativa evitar disseminar verdades como quem guarda um vírus mortal, ajudou a conter a estranheza da situação.

No início de 2040, um outro fator colocaria as duas organizações em lados opostos.

Desde o final da década de 20, os sistemas de inteligência artificial vinham se popularizando e tomando conta de empresas e governos. Então começaram a haver debates sobre os limites. Conforme os debates avançavam, as tecnologias avançavam ainda mais, e os limites iam caindo ou sendo levados para um nível superior. Até onde se podia atribuir responsabilidades a um sistema de inteligência artificial? Um médico virtual podia cuidar de seu filho? Melhor do que um médico de carne e osso? O seu filho aprenderia mais rápido, e de maneira mais eficaz, com um professor virtual? Em todos os debates, sempre havia, naturalmente, a questão da empregabilidade. Afinal, se todos os serviços fossem executados por computadores, onde as pessoas iriam trabalhar?

Em 2040, porém, os sistemas de inteligência artificial já tinham tomado conta de quase tudo. Em alguns países, até mesmo o judiciário era controlado por computadores. O sistema avaliava os prós e contras de cada decisão judicial, analisava o texto constitucional, cotejava-o com tratados internacionais, e chegava à solução mais justa. Tudo muito rápido e imparcial. Ninguém precisava mais temer um juiz partidário ou corrupto.

Depois de alguns anos de experiência, outras formas de opressão e desvirtuamento da justiça vieram à tôna, mas isso será abordado mais tarde neste livro.

Surgiram os sistemas de inteligência artificial pessoais, que poderiam ser acessados pelo celular ou qualquer aparelho eletrônico.

A última grande fronteira tecnológica agora era a integração entre o sistema de inteligência artificial individual e o cérebro humano. Era um avanço lógico e até mesmo simples, se formos pensar bem. Um chip no cérebro conectava-se aos sentidos e podia nos transportar para qualquer experiência. Surgiram os filmes em realidade virtual, e depois os programas de vivência virtual, onde você podia conhecer, relacionar-se, transar, casar-se com pessoas de outros países, e manter esse relacionamento por anos.

Todos esses avanços eram desfrutados por uma minoria privilegiada. No Brasil, a má distribuição de renda permanecia uma das mais perversas do planeta. A ditadura mal disfarçada tentava coibir qualquer manifestação, e a minoria tinha pouco contato com a maioria pobre em função do controle absoluto da notícia exercido pela mídia. Mesmo assim, as manifestações de protesto contra a ditadura midiático-judicial, como os movimentos sociais chamavam a democracia artificial dominada pelas organizações, cresciam cada vez mais.

As lideranças mais tradicionais da Hermes olhavam com desconfiança e, frequentemente, hostilidade, para os avanços dos sistemas de inteligência artificial, porque entendiam, corretamente, que eles poderiam reduzir o seu poder. Em países mais avançados, como já se disse aqui, os aparelhos judiciais haviam sido completamente entregues a sistemas de IA. Se isso acontecesse no Brasil, implodiria o principal capital político de Hermes: o controle dos juízes. O poder político seria então monopolizado pela Millenium, cujos membros vinham aumentando sua participação acionária nos sistemas virtuais que, apostavam eles, dominariam toda a estrutura do Estado. (…)

 

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Atreio

08/11/2016 - 14h04

se no pedido de impeachment, aceito por ed cunha não havia crime cometido por parte da presidente e mesmo assim ed cunha, o criminoso, o colocou em votação, este não estaria incorrendo em improbidade administrativa?
pode um presidente da camara aceitar um pedido sem conteúdo?
dar andamento em um rito sem objeto?
sem fatos?
não pode.

não caberia, agora, pedirmos o cancelamento deste processo, pois não havia crime naquele momento e nem agora? pelo contrario, agora q temos um presidente criminoso…
sim, cabe.

com a palavra: dr. lewadinho, o tropeçante
pois se pra tirar um presiente não é necessário este cometer crime e nem ser eleito, vou até o palacio do planalto pegar miSHELL pela mãozinha e tirar ele de lá.

Pedro Tietê

08/11/2016 - 12h08

E daí todos sabem disso me diga o que fazer eu já perdi a esperança

    Gr K

    08/11/2016 - 13h19

    Pedro, é difícil essa situação. Os brasileiros não tem patriotismo. Somos Colônia do EUA, inclusive na mente.


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