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Fabio Reis Vianna: o caos sistêmico brasileiro e a anarquia no sistema internacional

Por Fabio Reis Vianna No ano de 1914, a Condessa Kleinmichel, representante típica da aristocracia russa, oferecia a suas sobrinhas o que para ela seria um “modesto” baile à fantasia: 300 convidados divididos em pequenas e fartas mesas, como era de costume nas altas rodas daquela sociedade tão dividida quanto desigual. Ao mesmo tempo em […]

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Por Fabio Reis Vianna

No ano de 1914, a Condessa Kleinmichel, representante típica da aristocracia russa, oferecia a suas sobrinhas o que para ela seria um “modesto” baile à fantasia: 300 convidados divididos em pequenas e fartas mesas, como era de costume nas altas rodas daquela sociedade tão dividida quanto desigual.

Ao mesmo tempo em que as extravagantes elites de Moscou e São Petersburgo viviam gradeadas em exuberantes mansões repletas de obras de arte e mobília, o restante da população sobrevivia na miséria e em longas jornadas laborais, sendo que os moradores do campo e das aldeias mais distantes dos grandes centros, praticamente eram desafiados durante o longo e duro inverno a resistir a presença ameaçadora da fome.

Num distópico Brasil de 2019, em meio as queimadas sem precedente na floresta Amazônica, vemos um país em estado pós-traumático, atordoado pela desestabilização que ainda vem sofrendo desde a Revolução Colorida de junho de 2013, a mesma que desencadeou na submissão total do Alto Comando das Forças Armadas aos interesses americanos, e culminou por alçar Bolsonaro ao poder, um elemento perigoso cujo único objetivo é entregar os ativos do país àqueles que o comandam: Steve Bannon e Donald Trump.

A cada dia fica mais claro que o sistema mundial passa por uma reordenação de seu tabuleiro geopolítico, e que a escalada dos conflitos interestatais e do progressivo caos sistêmico em importantes nações do sistema são consequência direta da ausência de liderança global.

O fim das ilusões

O fim de mais um longo ciclo da política internacional, por mais estarrecedor que seja, tem se revelado algo iminente e plausível desde quando o presidente Putin, em discurso de 2007, deixou claro sua insatisfação com o alargamento da OTAN para as bordas ocidentais da fronteira russa.

Era o fim das ilusões: O utópico mundo cosmopolita, liberal e sem conflitos, deixa de existir à partir das evidências do ressurgimento russo como potência militar em 2015 na Síria, e da consolidação do salto econômico chinês.

A Nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, assim se desenhou, à luz da nova realidade multipolar que se apresentava na aurora do século XXI, deixando para trás qualquer reminiscência da ordem liberal forjada e liderada pelos próprios americanos ao fim da última guerra hegemônica em 1945.

Como ficou bem claro e documentado em 18 de dezembro de 2017, a nova estratégia americana nomeia, portanto, seus novos inimigos: as “perigosas potências revisionistas”, Rússia e China.

Sendo assim, abrindo mão da liderança do sistema, os americanos deixam o caminho livre para o reboot mode Mad Max: uma insana e perigosa disputa, sem regras, pela hegemonia tecnológica, militar e comercial global. À partir de então, na lógica selvagem imposta pelo antigo hegemon , acuado por novas potências emergentes, quem não estivesse alinhado cegamente aos seus interesses seria tratado como inimigo.

O esgarçamento do conflito

Durante o último mês de agosto, as notícias sobre as perspectivas econômicas globais não são nada animadoras.

Por mais que a imprensa mundial reduza a questão ao agravamento da guerra comercial entre Estados Unidos e China, o que de fato está ocorrendo é o esgarçamento do conflito interestatal. Esgarçamento este que envolve não somente questões comerciais, mas litígios típicos de momentos de inflexão de ciclos sistêmicos da política internacional.

A disputa pelo domínio da tecnologia 5G, e a corrida cada vez mais acirrada por recursos naturais e terras raras são exemplos claros de que o mundo caminha para inflexíveis configurações de alianças antagônicas entre países.

Historicamente, ondas de importantes inovações tecnológicas, aliadas ao aumento das tensões entre potências hegemônicas, e potências emergentes desafiantes, pressagiam a deflagração de um iminente conflito global.
A Alemanha, país líder, e motor da Europa, pela primeira vez se vê, depois de anos de crescimento pujante, entrando em recessão, o que provavelmente arrastará consigo todo um continente ainda fraturado e não recuperado pela crise de 2008.

A ascensão de ultradireitistas em países de peso como Itália e Reino Unido aciona o alerta vermelho e nos remete a um incômodo deja vu, por lamentáveis e perigosos fatos ocorridos nos anos que antecederam às duas últimas guerras mundiais.

Recentemente, quando ainda aspirava tornar-se premier, Matteo Salvini, invocando Mussolini, no alto de sua popularidade e sem a menor cerimônia, emitiu a perigosa frase:

“Peço aos italianos que me deem plenos poderes”

Na quarta-feira, dia 28 de agosto, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em ato sem precedentes, praticamente conquistou plenos poderes com o aceite da rainha em suspender o Parlamento na reta final do Brexit.

São tempos estranhos que revelam o estado de anarquia do sistema internacional.

Anarquia que tende a se agravar com a iminência de uma devastadora recessão global já alardeada pela mídia mundial.

A próxima crise mundial

Como se não bastasse a longa recessão alemã que se avizinha, os sinais de uma crise dos débitos chinês e americano são visíveis.
Engrenagem da economia global desde o crash de 2008, a China de hoje tem de lidar com uma dívida excessiva que, tanto indústria local, quanto consumidores, contraíram ao longo de todos estes últimos anos.

Os Estados Unidos, desde o início da política monetária permissiva iniciada em 2009, chega a 2019 com um déficit fiscal de 1 trilhão de dólares; ao mesmo tempo que leva a cabo um aumento colossal de 700 bilhões de dólares no orçamento do Pentágono, colocando lenha na fogueira da corrida armamentista que se desenha para os próximos anos.
As Forças centrífugas de insatisfação popular que, pouco a pouco, vem se formando no seio do antigo palco principal das guerras hegemônicas do sistema mundial, a Europa, são um termômetro do que pode estar por vir.

A dura realidade imposta à União Europeia, ao se ver praticamente alijada pelos americanos da histórica proteção militar garantida como condição fundamental para a pacificação do continente, e contra a suposta ameaça russa, impõe a França e Alemanha, as duas maiores potências continentais, levarem a cabo o projeto de defesa comum europeu, sob risco de, caso contrário, as crescentes tensões entre Estados Unidos, e o projeto de integração eurasiático liderado por Rússia e China, engulam a Europa, desintegrando-a, e jogando-a novamente no caos que historicamente sempre desemboca em protestos, rebeliões populares e, em ultimo caso, insurgências revolucionárias.

A guerra interna

A guerra interna, no seio das classes médias e elites das principais nações do sistema mundial, também é nítida na sociedade brasileira, que neste exato momento de sua história, se encontra extremamente dividida e polarizada, após atonitamente presenciar a destruição e fragilização de sua economia e instituições republicanas.

Com o agravante histórico de uma tradição de interferência direta no processo político brasileiro que remonta a 1889, os militares, instados pela idéia messiânica de que seriam uma espécie de Poder Moderador da República em momentos de crise sistêmica, intervêem novamente no processo para impor a ordem, e por tabela restaurar a antiga aliança estratégica com os americanos.

Passados mais de oito meses da chegada ao poder do antigo capitão de extrema-direita, Jair Bolsonaro, devidamente tutelado por nada menos do que oito generais encastelados dentro do Palácio do Planalto, o Brasil se encontra em meio à disputa aberta pela hegemonia de uma ordem internacional em estado anárquico, e onde parâmetros éticos de convivência, aparentemente, estão temporariamente suspensos até que uma nova leadership, e um novo ciclo de paz e estabilidade se inicie, com novas regras e instituições.

Neste cenário, fica cada vez mais claro que o Brasil é um dos palcos onde a disputa hegemônica têm se dado de maneira mais intensa e sofisticada, ao ponto da própria sociedade brasileira ainda não ter se dado conta.

Desde o enquadramento do Brasil pelos Estados Unidos para se contrapor ao eixo eurasiático e impedir que àqueles países tenham acesso irrestrito à fronteira agrícola, e aos recursos naturais brasileiros, a recessão e o desalento vem se aprofundando como algo sem precedentes em nossa história.

Segundo estudo do economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social,” a concentração de renda o Brasil vive o ciclo mais longo de aumento da desigualdade de sua história, e a concentração de renda cresce no país há mais de cinco anos. Nos últimos 17 trimestres seguidos, o Índice Gini, dado que mede o nível de desigualdade social, vem crescendo continuamente.”

“Nem mesmo em 1989, que constituiu o nosso pico histórico de desigualdade brasileira, houve um movimento de concentração de renda por tantos períodos consecutivos”, diz o estudo.

Tal situação nos leva a intuir que a hipótese de uma crise financeira internacional combinada com a crise econômica e institucional interna em que já vive o Brasil, poderá desencadear uma espiral de insatisfação popular que acabe por explodir em protestos, rebeliões; até o caos e, em ultima instância, a própria insurgência revolucionária.

Analistas sérios como o filósofo Vladimir Safatle já falam abertamente que vivemos um clima político pré-insurgencial no país.

Em outros momentos da história brasileira, ventos de fora acabaram por precipitar mudanças internas abruptas, como foi o caso da crise de 1929, que enterrou a República Velha e alçou ao poder Getúlio Vargas.

A História prega muitas peças aos analistas incautos que buscam precedentes dentro do próprio objeto de análise, mas ao mesmo tempo em que na decadente Rússia czarista não existiam instituições suficientemente enraizadas, esta vivia uma explosão de progresso econômico, combinado com extrema desigualdade, e divisões internas cada vez mais esgarçadas. Um país gigante e vasto; ao mesmo tempo moderno e vanguardista, autocrático e conservador. Incontrolável.

O final dessa história nem os mais imaginativos analistas poderiam prever…

Referências:
McMillan, Margaret. A primeira guerra mundial. São Paulo: Globo Livros, 2014.
Farias, H.C. Guerras hegemônicas e ordem internacional. In: Fiori, José Luís. Sobre a guerra. Petrópolis: Vozes, 2018.
Fiori, José Luís. Ética cultural e guerra infinita. In: Fiori, José Luís. Sobre a guerra. Petrópolis: Vozes, 2018.
Arrighi, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e origens do nosso tempo. São Paulo: Unesp, 1996.
Kundnani, Hans. America chiama germania: Il tempo del pranzo gratis è finito. Limes: Rivista italiana di geopolítica, maio, 2017.
Desigualdade de renda bate recorde no Brasil e não para de subir há 5 anos. O Globo, Rio de janeiro, agosto, 2019.
Inman, Phillip. Is a global recession coming? Here are seven warning signs. The Guardian, 25-08-19.

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Comentários

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antipaneleiro

30/08/2019 - 22h20

Boa análise, mas estranhei a total ausência da America Latina na narrativa. Tanto faz o que ocorre na Argentina, Venezuela, Uruguai, Ecuador, Bolívia ou mesmo na America Central (Honduras)??? Antes de ser preso, Lula aparecia sempre com o “terno” boliviano ganho de Evo Morales. Coincidencia??? Vamos acompanhar Salvini e Johnson ou prestar atenção à Argentina, ao Uruguai (mais um curioso caso de càncer entre os democratas latinoamericanos!!), ao que ocorre no Ecuador do Lenin Moreno, na já sitiada Venezuela, etc. Posso estar enganado, mas acho que olhar para a Europa, é como olhar para os anos 90 ou para os anos 30. Temos um sopro de esperança no Mexico e na Argentina (apesar de acreditar – infelizmente – num golpe LAVAJATO ali – espero que não!!). Enfim, pode-se comparar o Brasil de 2013 com a Alemanha da República de Weimar e suas consequências. O que importa, porém, é acompanhar os demais países onde o “Regime Change” ocorreu.

Paulo

30/08/2019 - 21h27

A análise é válida, especialmente do momento de inflexão que vivemos na política internacional (pelo menos enquanto Trump estiver no Poder). Mas se o analista acha que estamos em vias de uma insurreição popular, no Brasil, especialmente se do tipo que costuma conduzir regimes autocráticos, centralizadores e antidemocráticos de esquerda ao Poder, pode ir tirando o cavalinho da chuva. É mais fácil a “revolução” à direita, com protagonismo das FFAA…


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