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Entrevista: Elias Jabbour fala sobre o socialismo versão 4.0

Na Fundação Maurício Grabois Elias Jabbour: “A ‘Nova Economia do Projetamento’ é o socialismo versão 4.0” Redação Publicado em 11.12.2019 Em entrevista para o site da Fundação Maurício Grabois, logo após o lançamento de seu novo livro sobre a China, na última sexta-feira, (06/12), em São Paulo, Elias Jabbour destacou alguns aspectos que considera centrais […]

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Na Fundação Maurício Grabois

Elias Jabbour: “A ‘Nova Economia do Projetamento’ é o socialismo versão 4.0”
Redação Publicado em 11.12.2019

Em entrevista para o site da Fundação Maurício Grabois, logo após o lançamento de seu novo livro sobre a China, na última sexta-feira, (06/12), em São Paulo, Elias Jabbour destacou alguns aspectos que considera centrais para discutir a experiência chinesa atual.

No lançamento, que contou com as presenças do presidente da FMG, Renato Rabelo e do professor da Unicamp, Eduardo Fagnani, Elias Jabbour afirmou que buscou, “um amplo leque de autores, marxistas e não marxistas, para explicar fenômenos novos que não podem ser explicados com as teorias existentes”.

O presidente da FMG falou da importância de se aprofundar espaços de estudos e formulação e disse que a Fundação tem procurado desenvolver linhas de pesquisa em algumas áreas para enfrentar um esforço teórico de compreender a realidade contemporânea. “Temos que estudar as novas formas sofisticadas de dominação do capitalismo contemporâneo, e do socialismo contemporâneo. E estudar a China é estratégico. O que a China consegue é um empreendimento gigantesco. E o tema da alternativa, da busca de alternativas para o mundo, é a questão da nossa época. Não só para o capitalismo, mas para os comunistas, uma alternativa para superar o capitalismo”, afirmou Rabelo.

Olhando a formação histórica da China, você disse que lá, a planificação econômica existe há mais de 2000 anos. Como a cultura milenar chinesa influencia no desenho atual do Estado Chinês?
Elias Jabbour: É sempre bom tomar cuidado para não cairmos em um determinado “historicismo”. Mas qualquer processo deve ser visto como um “problema histórico”. É muito irresistível perceber que as reformas econômicas chinesas de 1978 iniciam-se com a permissão aos camponeses a levarem ao mercado seus excedentes de produção. O resultado disso foi um boom na produtividade agrícola e surgimento de um mercado interno que serviu de base a um prolongado processo de crescimento econômico baseado no consumo. Até aí nenhuma novidade. Porém, tenho a tendência em acreditar que o Partido Comunista ao permitir o livre comércio de excedentes no campo ele acaba por fabricar um “mercado”. Recentemente escrevi um artigo com o professor Belluzzo sobre isso na revista Carta Capital.

Ora, ao “fabricar o mercado” o Partido Comunista da China criou as condições para se reinventar e, mesmo, reinventar o socialismo. Essa reinvenção do socialismo na China só foi possível pelo reencontro da China com instituições milenares que levaram o país a ser o “centro do mundo” durante séculos. Essas instituições que relacionavam mercado, planejamento de grandes obras hidráulicas e o concurso público para admissão em carreiras de Estado (instituído há 1500 anos) não levaram a China a uma revolução industrial como a ocorrida na Inglaterra. Mas o reavivamento destas instituições, não somente na China, mas em outras partes da Ásia levaram ao surgimento de dinâmicas, de formações econômico-sociais, de tipo capitalistas e socialistas. Na Ásia coabitam experiências capitalistas e socialistas de Estados Desenvolvimentistas. A China é a primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais (socialismo de mercado). O Vietnã é a segunda experiência.

Você afirma que o que há na China é um socialismo de mercado. Mas ao mesmo tempo diz que o conceito de capitalismo de Estado é algo superado. O que diferencia esses dois tipos econômicos?
Elias Jabbour: Capitalismo de Estado não pode ser alçado ao grau nem de categoria, nem tampouco de conceito. Trata-se de uma referência a-histórica, vaga e sem sentido. Vejamos, na medida em que desde o processo de acumulação primitiva até a Revolução Industrial na Inglaterra, passando pelas experiências retardatárias de industrialização, o Estado sempre foi um ente absoluto no processo, o comandante. Vou além: o Estado ao criar moeda ele se transforma em mercado! Logo, Estado e mercado formam uma unidade dentro do organismo econômico capaz de controlar e ser controlado por uma classe de interesses. Existem casos onde o Estado é mais interventor direto na economia do que outros, sim. Mas essas nuances entre “capacidades estatais” para cada caso não significa que exista um “capitalismo de Estado” e um “capitalismo de mercado”. O capitalismo e o Estado moderno são criações simultâneas que se sintetizam em três características principais: 1) a primazia de instituições de tipo liberal; 2) a primazia da propriedade privada e 3) o poder político ser exercido pela classe dos proprietários privados dos meios de produção.

Fica a brincadeira: se nos Estados Unidos, o Partido Republicano passar a se chamar “Partido Comunista dos EUA” e o Partido Democrata sendo o “Partido Comunista Estadunidense” e no poder ambos concordam em estatizar todo o sistema financeiro e as cem principais companhias do país, como os acadêmicos classificariam aquela experiência? Capitalismo de Estado?

Por outro lado, não gosto de trabalhar com conceitos apriorísticos, entre eles o de capitalismo e socialismo. O que existe na China é uma engenharia social nova que combina diferentes modos de produção, de diferentes épocas históricas, convivendo em uma certa “unidade de contrários”. Existe capitalismo na China, existem formas pré-capitalistas de produção que ocupam cerca de 400 milhões de camponeses. Existe o que eu chamo de “empresas não capitalistas orientadas ao mercado”, que são um mix de propriedade coletiva, com acionistas privados e estatais – mas sem primazia de capitalistas privados. E existe o núcleo da economia composta com uma centena de grandes conglomerados empresariais estatais, um sistema financeiro de longo prazo, capilarizado e estatal. Esse núcleo eu chamo de modo de produção socialista, o modo de produção dominante. Com o poder político exercido por um bloco histórico comprometido com uma estratégia de caráter socializante, o que não exclui a existência de contradições de múltipla monta no país. Nesse “socialismo de mercado”, o capacidade do Estado de atuar na economia é quantitativamente maior e qualitativamente superior do que o verificado em um capitalismo, por exemplo.

Você afirma que o que emerge na China é uma nova formação econômica-social, um novo modo de produção, entre outras coisas baseado na economia do projetamento. Existe em curso uma experiência que não pode ser “classificada”?
Elias Jabbour: Posso dizer, sem nenhuma ponta de arrogância, que tenho me esforçado – juntamente com o economista italiano Alberto Gabriele – em classificar aquela experiência. Esbarramos em teorias que ainda dominam o debate acadêmico forjadas nos séculos 19 e 20 com a missão de compreender um modo de produção específico, o capitalismo. Incluo nesta plêiade o “marxismo acadêmico”, a Teoria Marxista da Dependência, o marxismo ocidental e o marxismo soviético, este último capaz de nos entregar uma leitura das formações econômico-sociais de tipo “economia de comando” que surgem depois da Revolução Russa.

A compreensão de que está a se configurar na China uma “nova formação econômico-social” é parte de um esforço nosso de ressignificar alguns conceitos marxistas à luz do nosso tempo. Temos revisto os conceitos de modo de produção, formação econômico-social e a lei do valor. Não vou aqui dar um spoiler de nossos últimos desenvolvimentos, mas estamos a construir uma nova teorização baseada no marxismo que leva em consideração a prevalência no mundo de relações de produção de tipo mercantil e monetária, a lei do valor como operadora do sistema e o circuito investimento-acumulação e extração de mais-valia. Classificar a China e sua formação econômico-social passa por compreender as restrições que a prevalência que expus aqui impõe limites imensos à construção do socialismo. A começar pelo fato de o socialismo se “obrigar” – para sobreviver enquanto experiência – a ser um sistema que crie valor, algo de difícil compreensão à maioria dos marxólogos de plantão. Esse é um ponto.

O outro ponto é que a China, desde a década de 1990, conseguiu adequar suas empresas a esta ordem mercantil e financeira internacional. Internamente, transformou o mercado em instrumento de governo inaugurando um tipo de planificação que chamamos de “planificação compatível ao mercado”. Evidente que essa forma de planificação existe também no capitalismo, mas é obrigatório ao socialismo. Porém, temos identificado uma mudança qualitativa no seio dos grandes conglomerados empresariais estatais, levando a uma transformação na coerência interna do modo de produção. Na medida em que muitas dessas empresas já operam na fronteira da tecnologia, passam a ser capazes de projetar mercados futuros e operar grandes projetos estatais como o Made in China 2025, a Nova Rota da Seda e os projetos concernentes ao Big Data, Inteligência Artificial e as plataformas 5G e 6G. Essa mudança qualitativa é o que demanda a reclassificação do modo de produção dominante interno a nova formação econômico-social. Resgatamos as elaboração de Ignacio Rangel sobre a “economia do projetamento” que surgiu no século passado e fruto da fusão entre a planificação soviética, o keynesianismo e a economia monetária. Essa economia foi proscrita com o fim da URSS, a emersão da dinâmica financeirizada de acumulação e o keynesianismo militarizado norteamericano. Esta economia renasce na China sob o acicate da “Nova Economia do Projetamento”, que pode ser vista como uma variação qualitativa do modo de produção socialista na China, gerando uma transição lenta e graduada “planejamento compatível ao mercado” ao “planejamento baseado no projeto” (Project-Based Planning). Posso dizer que estou bem adiantado na categorização desta nova economia e em breve muitas novidades bem heterodoxas virão. A “Nova Economia do Projetamento” é o socialismo versão 4.0

Um alerta que você faz é com relação à guerra tecnológica, que a depender do seu desenvolvimento pode matar a experiência chinesa. Quais são os desafios nesta área?
Elias Jabbour: Eu não tenho dúvidas que essa guerra tecnológica travada contra a China pode ser tanto a consolidação do socialismo como experiência em âmbito internacional, quanto seu próprio ocaso. É pelo diferencial na produtividade do trabalho que os diferentes modos de produção são superados. O arado de boi causou uma revolução tecnológica que levou ao fim o escravismo em pról do feudalismo. E assim sucessivamente. A superação do capitalismo vai demandar a existência de um modo de produção superior em matéria de geração de riqueza e sua distribuição. Tenho dito que as possibilidades abertas ao socialismo e à planificação econômica são imensas no mundo atual dada a maior capacidade de projetar e maxi-racionalizar o processo de produção pela via da incorporação à economia real de todo esse aparato tecnológico à disposição. Se quisermos entender o século XXI teremos de entender e dominar a ciência da planificação econômica.

O desafio chinês é fazer a transição do “planejamento compatível ao mercado” ao “planejamento baseado no projeto” de forma a causar o menor trauma possível. Esta transição significa uma superação em relação ao estágio mais alto de uma situação anterior, pois esta “Nova Economia do Projetamento” é também fruto e resposta às imensas contradições que envolvem o processo de desenvolvimento chinês, notadamente a questão ambiental. Não se trata de uma fácil transição, o maior especialista em economia chinesa no mundo, o professor Barry Naughton, tem chamado a atenção para uma queda da lucratividade das empresas estatais chinesas e a tensão existente entre sua capacidade de execução e as demandas do Estado chinês sobre seu corpo empresarial em meio a esta guerra tecnológica.

Ainda assim creio que os chineses têm todas as condições para sair vencedora desta guerra. Tem um Partido Comunista alinhado com os desafios de nosso tempo, uma soberania monetária impressionante e uma capacidade de observar além do horizonte digna do que Gramsci, ao se referir ao papel histórico do Partido Comunista, chamava de “Príncipe Moderno”

Discutindo a questão do direito à rebelião você afirma que a democracia é o regime da abundância e não da escassez, como isso se expressa na China na relação do Estado com a sociedade e as organizações populares?
Elias Jabbour: O direito à rebelião foi amplamente exercido na China no início da presente década. Em 2010, rebeliões de operários e camponeses levou o governo a ligar o sinal de alerta. As relações de produção estavam se levantando contra as forças produtivas. Desde então, os salários na China tem crescido acima da produtividade do trabalho e todo um aparato que pode desembocar num imenso e poderoso Estado de Bem-Estar Social está sendo construído na China. Uma elaboração que estamos desenvolvendo, a partir da prevalência da lei do valor sob o socialismo, é que uma economia é formada por dois macro-setores: o “produtivo”, aquele composto pelos meios de produção e o “improdutivo” que se resume aos serviços de educação, saude, cultura etc. Marx é muito categórico ao afirmar que o trabalho produtivo deverá sustentar o trabalho improdutivo. A nós, essa é uma senha para interpretarmos que uma economia socialmente avançada depende da existência de um poderoso macro-setor produtivo. Isso a China já tem, o momento agora é de construção do macro-setor produtivo. E isto está acontecendo.

Sobre a relação do Estado com as organizações populares, posso dizer que a China caminha para a constituição de instituições políticas que rememoram as organizações ao nível da aldeia. É muito precoce a experiência de uma “democracia com características chinesas”. Pessoalmente penso que as instituições são respostas historicamente dadas a questões historicamente postas. A questão democrática na China deverá se desenvolver ao longo do tempo, na mesma proporção em que as respostas a ela deverão vir no seio da própria questão.

Você afirmou que tem convicção que o socialismo é factível. Quais são os elementos centrais que fazem você chegar a essa conclusão?
Elias Jabbour: Tenho uma visão do socialismo muito diferente do que aquilo que aprendemos em livros e manuais. E pago um certo preço por ter essa postura de pensar com minhas próprias ferramentas de análise. O socialismo é factível, evidente. Pois o socialismo se trata de uma antropologia filosófica que pensa o homem em sua afirmação racional, sem fetiches, idealismos e senhor de seu destino. A crença no progresso e traços prometeicos na relação com a natureza completam minha visão cujas raízes residem no racionalismo clássico. O socialismo não é um fato fortuito, é o devir esperado que está sendo construído historicamente.

Essa construção tem na China sua mais acabada, e ainda imperfeita experiência. Aos trancos e barrancos conseguiu alçar da condição da extrema-pobreza cerca de 840 milhões de pessoas. Está conseguindo construir instituições políticas e econômicas de ordem não capitalista capazes de fazer o país crescer a uma taxa média de 9,1% há 40 anos. O desafio ambiental está sendo enfrentado: Em 2017 um quinto de todos os carros elétricos do mundo foram vendidos em apenas seis cidades chinesas onde já existe legislação restringindo a utilização de carros movidos por combustíveis fósseis. Em 2025, projeta-se a venda de 11 milhões de carros elétricos, sendo que deste montante 19% serão vendidos na China, 14% em toda a Europa e 11% nos Estados Unidos.

No ano de 2040 a previsão é que 40 milhões de veículos elétricos estarão rodando na China. A cidade de Shenzen foi escolhida recentemente para ser a “cidade modelo socialista”. Atualmente nesta cidade o transporte público e os táxis não são movidos a gasolina ou diesel. As técnicas inerentes ao Big Data serão postas à serviço da administração e governança da cidade.

Qual país capitalista pode apresentar tais feitos na contemporaneidade?

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