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Ana de Hollanda se despede de Aldir Blanc

A ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda nos enviou um artigo relatando experiências que teve com o músico Aldir Blanc, que faleceu nesta segunda-feira. É uma carta emocionada de despedida, trazendo fatos que nos ajudam a conhecer um pouco mais da história da música brasileira. *** ALDIR BLANC, O PERSONAGEM E A OBRA Por Ana […]

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A ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda nos enviou um artigo relatando experiências que teve com o músico Aldir Blanc, que faleceu nesta segunda-feira.

É uma carta emocionada de despedida, trazendo fatos que nos ajudam a conhecer um pouco mais da história da música brasileira.

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ALDIR BLANC, O PERSONAGEM E A OBRA

Por Ana de Hollanda

Hoje amanheci com a notícia que eu torcia todas as noites, quase rezava para não receber, por mais que tudo indicasse que em alguma manhã isso seria praticamente inevitável. Talvez por isso eu retardava a hora de levantar, mas dormia bem ao saber que contava com um amigo poeta que viu a tarde cair feito um viaduto, que provoca inveja no tempo e que glorificava todas as lutas inglórias que através da nossa história, não esquecemos jamais.

Aldir, que sempre foi um mestre do imponderável no estilo, um “ourives do palavreado” como Caymmi descreveu um dia, foi um escritor e compositor que eu cultuava de longe, mas me provocava certa inibição para tentar uma aproximação. Quando eu estava selecionando o repertório de meu terceiro disco, tive a clara noção de que estava faltando um Aldir para quebrar a linha menina-bem-comportada que, mesmo não sendo verdadeira, era uma imagem já colada em mim. Daí, mesmo constrangida diante do mago, por vias tortas, procurei alguns de seus parceiros para pedir canções inéditas. Imediatamente fui premiada com SEM MALDADE – a cara dele – parceria com Moacyr Luz!

A melodia da segunda – YÉS, ZÉ MANÉS, escutei pela primeira vez no apartamento de Guinga, entre outras tantas maravilhas inéditas a serem letradas. Não vacilei um segundo ao ser apresentada a essa e sugeri, e insisti, que ele encomendasse a Aldir uma letra, já que o clima da música soava palavras do próprio. Depois de uns três meses, tendo que fechar o repertório para iniciar a produção do CD, vim ao Rio e procurei o Guinga para saber se, por acaso, a parceria já não estaria pronta ou em vias de. Por motivos que não vem ao caso, ele me deu o telefone do Aldir, prevenindo, no entanto, que seria melhor se eu mandasse um fax, já que ele não era de falar muito pelo telefone (o que descobri mais tarde ser absolutamente inverídico).

Fax eu só tinha em São Paulo, mas arrisquei, liguei e, cheia de dedos, comecei a deixar um recado na secretária eletrônica, quando fui interrompida pela Mary que gritou: “Ana! Ana! Tá pronta, saindo do forno agora! Saindo da impressora”. Daí veio o Aldir, na maior euforia, consciente da dimensão da obra que tinha acabado de compor e descreveu todo o clima da canção, uma mistura de ambientes que poderiam se dar numa boate esfumaçada da Gamboa, ou qualquer subúrbio com pretensões a New Orleans. Leu a letra, fazendo comentários descritivos e passou a cantar enquanto eu, muda, escutava tudo sem querer interromper e sem palavras para me expressar, dado o estado de êxtase em que me encontrava. Gravei a canção inspirada numa eventual cantora de bordel, sempre visualizando a atmosfera descrita por Aldir.

Passados alguns anos, me mudei para o Rio, já conhecendo o casal; mais tarde conheci as filhas. Alguns anos depois, quando assumi o Ministério da Cultura, levantei a bandeira dos direitos autorais que estavam sendo ameaçados pela proposta de lei do ministro anterior. Na realidade, ela atendia prioritariamente aos interesses dos oligopólios da internet e, diante da minha postura, uma verdadeira quadrilha passou a me massacrar por todos os meios e, não bastando, voltavam sua campanha difamatória contra qualquer artista que saísse em minha defesa. Conseguiram silenciar, ao menos publicamente, quase todos os músicos e compositores. Menos Aldir que, em sua coluna no jornal O Globo, comprou a briga e se empenhou em denunciar toda trama que se passava nos bastidores dessa campanha sórdida. Para quem não sabe, Aldir foi desde sempre um defensor convicto dos direitos dos autores, uma profissão e meio de sobrevivência natural dos criadores.

Nesse período, conversávamos regularmente e quando eu contei que ao viajar, no voo me desligava de tudo lendo as crônicas de “Rua dos Artistas e Arredores”, além de me enviar alguns de seus outros livros e, assim como conversávamos sobre direitos autorais, passamos também a trocar ideias sobre a vida, amigos, famílias, livros, músicas e política, é claro.

Essa cumplicidade aos poucos tornou-se uma forte amizade tanto com ele quanto com sua companheira, Mary, figura encantadora, generosa e divertidíssima. Por não sair de casa, encontro frequentemente Mary, sendo que Aldir gostava mesmo era de ligar para bater papo sobre os mais variados assuntos. Só que, nos últimos tempos andava bastante estressado, desanimado com o panorama político, o que é absolutamente inevitável para quem já viveu momentos difíceis e períodos de otimismo. O tema dos direitos autorais permanecia e, embora eu soubesse de suas dificuldades financeiras, apesar de ser autor de dezenas de obras consagradas, ele nunca comentava sua situação. O problema, no caso, não era pessoal, mas sim uma questão de princípios. No entanto, ao passar mal e ter de ser internado onde, provavelmente, veio a ser contaminado pelo Covid-19, ele não contava com nenhum plano de saúde.

Partindo no mesmo dia em que Noel Rosa – outro excepcional cronista do cotidiano – se foi, em 1937, Aldir também nos deixou uma vasta obra a ser revisitada sempre.

A pandemonia levou o amigo, mas será derrotada pela obra.

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Comentários

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Marcia Regina Barbosa

09/05/2020 - 09h15

Respeito e admiração tornam uma amizade eterna!
Lindo texto, Ana!

Jeová santana

08/05/2020 - 22h03

Restam a luz das palavras e o valor da amizade como forma de consolo num país que leva um artista da estirpe de Aldir Blanc a esse triste fim no tocante a um padrão financeiro compatível com a dignidade de sua Grande Arte. São tempos de bandalhismo, mas sua poesia equilibrista nos guiará nessas trevas.


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