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China: o bicho-papão econômico

Traduzido de Dani Rodrik para o português no site Project Syndicate. CAMBRIDGE – À medida que a COVID-19 se foi espalhando da China para a Europa e depois para os Estados Unidos, os países atingidos pela pandemia deram por si numa louca disputa por produtos médicos – máscaras, ventiladores, roupas de proteção. Muitas vezes, era […]

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Foto: XINHUA/NEWSIS.

Traduzido de Dani Rodrik para o português no site Project Syndicate.

CAMBRIDGE – À medida que a COVID-19 se foi espalhando da China para a Europa e depois para os Estados Unidos, os países atingidos pela pandemia deram por si numa louca disputa por produtos médicos – máscaras, ventiladores, roupas de proteção. Muitas vezes, era à China que eles tinham de recorrer.

Quando a crise eclodiu, a China tinha tornado-se o maior fornecedor mundial de produtos essenciais, sendo responsável por metade de todas as importações na Europa e nos EUA de equipamentos de proteção individual. “A China lançou as bases para dominar o mercado de produtos médicos e de proteção nos próximos anos”, de acordo com uma divulgação recente realizada pelo New York Times.

Quando a China se virou para os mercados mundiais, teve a vantagem de fornecer um número praticamente ilimitado de produtos provenientes de mão de obra barata.  Mas, como todos já reconhecem, as proezas de produção da China não são o resultado de leis de mercado sem restrições.

Como parte da política Made in China 2025, o governo chinês apontou aumentos ambiciosos na participação dos produtores nacionais nos produtos médicos a nível mundial. O relatório do New York Times explica ao pormenor como é que o governo forneceu terras baratas para as fábricas chinesas, concedeu empréstimos subsidiados, instruiu empresas estatais a produzir materiais essenciais e estimulou as cadeias de produtos nacionais ao exigir que hospitais e empresas usassem produtos locais.

Por exemplo, Sichuan, a segunda maior província da China, reduziu para metade o número de categorias para as quais eram permitidas importações de equipamentos médicos. A maioria dos hospitais era obrigada a comprar tudo localmente, com apenas os principais hospitais a estarem autorizados a trazer produtos do estrangeiro.

A comunicação social ocidental está agora repleta de relatos da “tentativa da China de dominar componentes importantes do mecanismo da máquina industrial mundial”, novamente segundo as palavras do New York Times. Cada vez mais, o papel da China na economia mundial é retratado em termos que lembram não o “doux commerce”, mas a agressão imperial. O crescente autoritarismo do presidente chinês, Xi Jinping, e os progressivos conflitos comerciais com os EUA também fazem parte, obviamente, desta narrativa.

As tensões estratégicas e geopolíticas entre os EUA e a China são reais. Estão fundamentadas no crescente poder económico e militar da China e na relutância dos líderes americanos em reconhecer a realidade de um mundo necessariamente multipolar.  Mas não devemos permitir que a economia se torne refém da geopolítica ou, pior, reforçar e ampliar a rivalidade estratégica.

Para começar, temos de reconhecer que um modelo económico misto e orientado pelo estado, sempre esteve na raiz do sucesso económico chinês. Se metade do milagre económico da China reflete a sua viragem nos mercados após o final da década de 1970, a outra metade é o resultado de políticas governamentais ativas que protegeram velhas estruturas económicas – tais como empresas estatais – enquanto novas indústrias eram criadas por uma ampla variedade de políticas industriais.

O povo chinês foi o principal beneficiário, é claro, vivenciando a redução da pobreza mais rápida da história. Mas estes ganhos não ocorreram às custas do resto do mundo. Longe disso. As políticas de crescimento que hoje despertam a ira de outros países são a razão pela qual a China se tornou um mercado tão grande para exportadores e investidores ocidentais.

Mas não são as políticas industriais chinesas, como as que foram implementadas no setor dos produtos médicos, injustas para os concorrentes de outros lugares?

Deveríamos ter cuidado antes de chegar a esse veredito. A justificação normal para a política industrial é que as novas indústrias produzem repercussões na aprendizagem, externalidades tecnológicas e outros vastos benefícios sociais que tornam desejável o apoio do estado. Mas muitos economistas ocidentais presumem que os governos não sejam muito bons a identificar indústrias que mereçam apoio e que os consumidores e contribuintes nacionais suportem a maior parte dos custos. Por outras palavras, se a política industrial chinesa foi mal orientada e mal direcionada, foi a própria economia da China que sofreu em resultado disso.

Pela mesma lógica, se os governantes chineses efetivamente direcionaram atividades em que os benefícios sociais excedem os benefícios privados, produzindo melhor desempenho económico, então não está claro por que razão os estrangeiros deveriam reclamar. É o que os economistas chamam de “consertar as falhas do mercado”. Faz tanto sentido que pessoas de fora queiram impedir o governo chinês de adotar essas políticas, como faz sentido querer impedir que um concorrente liberte os seus mercados.

Isto é particularmente verdade quando a externalidade em questão é mundial, como no caso das alterações climáticas. Os subsídios chineses para painéis solares e turbinas eólicas produziram uma redução no custo das energias renováveis – um enorme benefício para o resto do mundo.

A economia da política industrial pode ficar mais complicada na presença de monopólios e empresas dominantes no mercado. As políticas industriais podem ser justificadamente restritas quando permitem o exercício do poder de mercado às custas do resto do mundo.

Mas os produtores chineses raramente são acusados ​​de dinamizar os preços, que é a marca do poder de mercado. É mais frequente a reclamação ser o oposto. Essas considerações, provavelmente, aplicam-se mais às empresas dos EUA e da Europa, que são frequentemente os atores dominantes nos mercados de alta tecnologia.

Nada disto é argumento para os outros países permanecerem ociosos enquanto a China progride para indústrias cada vez mais sofisticadas. Os EUA, por exemplo, têm uma longa história de políticas industriais bem-sucedidas, principalmente em tecnologias relacionadas com a defesa. Atualmente, existe um vasto consenso político no espetro político dos EUA de que o país precisa de uma política industrial mais explícita, tendo em vista os bons empregos, a inovação e uma economia verde.  Um projeto de lei apresentado pelo principal democrata do Senado dos EUA, Chuck Schumer, propõe gastar 100 mil milhões de dólares nos próximos cinco anos em novas tecnologias.

Grande parte do novo impulso para a política industrial nos EUA e na Europa é motivada pela perceção da “ameaça” chinesa. Mas considerações económicas sugerem que este é o foco errado. As necessidades e as soluções estão na esfera nacional. O objetivo deve ser o de construir economias mais produtivas e inclusivas a nível interno – não simplesmente superar a China ou tentar destruir o seu progresso económico.

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Comentários

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Paulo

15/07/2020 - 22h59

O grande problema atual do Ocidente é conciliar política de mercado e intervencionismo estatal. Há que se rever isso, urgentemente, abandonando velhos pressupostos liberais, inclusive estudando e emulando, eventualmente, o modelo chinês, mas de molde a preservar, sempre, a democracia burguesa, sem a qual a própria razão de existir do Ocidente estará irremediavelmente comprometida…


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