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Alberto Gabriele e Elias Jabbour: A China não é capitalista (uma resposta a Branko Milanovic)

27/04/2020 Por Alberto Gabriele e Elias Jabbour* Resposta ao artigo de Branko Milanovic publicado no jornal El Pais. O artigo “A China é realmente capitalista?” (El Pais, 15/04/2020) é um exemplo impressionante de equívocos grosseiros sobre quais são as diferenças realmente importantes entre capitalismo e socialismo. Determinados simplismos, mesmo que venham de acadêmicos ilustres e […]

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27/04/2020

Por Alberto Gabriele e Elias Jabbour*

Resposta ao artigo de Branko Milanovic publicado no jornal El Pais.

O artigo “A China é realmente capitalista?” (El Pais, 15/04/2020) é um exemplo impressionante de equívocos grosseiros sobre quais são as diferenças realmente importantes entre capitalismo e socialismo.

Determinados simplismos, mesmo que venham de acadêmicos ilustres e bem-intencionados, não apenas criam muita confusão intelectual. Eles também minam e desmoralizam qualquer tentativa de encontrar uma saída do profundo buraco da miséria e do desespero em que os multibilionários estão chutando a grande maioria da humanidade. Logo, este tipo de artigo deve ser posto à forte crítica.

De acordo com Branco Milanovic: “Para ser capitalista, uma sociedade deve ser caracterizada pelo fato de que a maior parte de sua produção é realizada usando meios de produção de propriedade privada (capital, terra), que a maioria dos trabalhadores sejam assalariados (não vinculados legalmente à terra e que não sejam trabalhadores autônomos que usam seu próprio capital) e que a maioria das decisões relacionadas à produção e aos preços seja tomada de maneira descentralizada (isto é, sem ser imposta a empresas). A China atende aos três requisitos para ser considerada capitalista”.

Quanto ao terceiro requisito, Milanovic (acredita) que demonstra sua tese afirmando: “No início das reformas, o Estado estabeleceu preços para 93% dos produtos agrícolas, 100% dos produtos industriais e 97% das mercadorias vendidas no varejo. Em meados da década de 1990, essas proporções foram revertidas: o mercado determinou preços para 93% das mercadorias vendidas no varejo, 79% para produtos agrícolas e 81% para materiais de produção. Hoje, uma porcentagem ainda maior de preços é determinada pelo mercado”.

Esses números (diferentemente de muitos outros no artigo) estão corretos, mas são insuficientes para comprovar a tese de Milanovic. Pelo contrário, são totalmente consistentes com a essência do modelo socialista de mercado da China. De fato, o governo não define o preço do sorvete. O que nós chamamos de planejamento compatível com o mercado concentra-se mais nos principais objetivos estratégicos, como promover o investimento e a acumulação de capital, (quase) pleno emprego, inovação e progresso técnico, proteção ambiente e implementar megaprojetos de longo prazo como a Nova Rota da Seda e o Made in China 2025. Talvez Milanovic seja teoricamente ingênuo para entender esse ponto.

Vamos agora aos equivocos mais óbvios. Milanovic afirma: “(…) é altamente improvável que o papel do Estado no PIB total, calculado em termos de produção, exceda 20%, enquanto a força de trabalho empregada em empresas públicas e de propriedade coletiva representa 9% do total emprego rural e urbano (…). Antes das reformas, quase 80% dos trabalhadores urbanos estavam empregados em empresas públicas. Agora, após um declínio que continua avançando ano após ano, essa parte representa menos de 16%. Nas áreas rurais, a privatização de fato da terra sob o sistema de responsabilidade transformou quase todos os trabalhadores rurais em agricultores do setor privado”.

Estas afirmações não são verdadeiras.

Não houve privatização de terras na China. A terra ainda é de propriedade do Estado e, como o próprio Milanovic reconhece, “os agricultores não são assalariados, mas principalmente trabalhadores independentes, enquadrados no que a terminologia marxista chama de ‘pequena produção mercantil’” e, portanto, não estão submetidos a relações capitalistas de produção.

No que diz respeito às áreas urbanas, as estatísticas oficiais básicas mostram uma imagem muito diferente. O “Anuário Estatístico da China” (AEC) apresenta dados anuais para todas as empresas industriais acima de um tamanho determinado. Eles incluem dois títulos principais, empresas financiadas com fundos nacionais e empresas com investimento direto estrangeiro. As empresas de capital nacional incluem empresas Estatais, Coletivas, Cooperativas, Empresas de Capital Fechado, Sociedades de Responsabilidade Limitada (SRL), Holdings Industriais (HI) e Empresas Privadas (EP). Algumas SLRs são apenas corporações financiadas pelo Estado, mas a maioria é classificada sob o subtítulo “como outras SLRs”.

As empresas estrangeiras incluem Fundos de Hong Kong, Macau e Taiwan (EEHKMT) e Fundos Estrangeiros (FE – do “resto do mundo”). Portanto, existem três grupos de empresas capitalistas na China: EP, EEHKMT e FE. Para cada um deles, o AEC também distingue vários subgrupos. Para as empresas privadas, em particular, estas são cinco: Empresas (totalmente) de Capital Privado, Empresas de Sociedade Anônima Privadas (ESAP), SRLs privadas, Sociedades de Participação Industriais Privadas (SPIP) e outras empresas. Para cada tipo de dados (número de empresas, ativos, produção, ganhos etc.), a soma dessas cinco legendas corresponde exatamente ao valor atribuído às EP como um todo, o que indica inequivocamente que todas as outras empresas não pertencem ao setor privado nacional.

A única interpretação plausível das estatísticas industriais da China sobre empresas mistas é que existe uma parte substancial dos LSRs e as SPIPs não pertencem a capitalistas nacionais ou estrangeiros. Esse agrupamento residual, mas longe de insignificante, é classificado como Outras LCRs e “… pode incluir qualquer grau de propriedade estatal abaixo da propriedade total” (Hubbard P., 2015, Reconciling China’s official statistics on state ownership and control. EABER Working Paper Series Paper No. 120, p. 5)

Em resumo, a maioria das LCRs e SPIPs deve ser vista como joint ventures indiretamente controladas pelo Estado. Eles são o resultado do grande processo de corporatização realizado desde a virada do século e constituem o componente mais crucial da estratégia de desenvolvimento econômico de orientação socialista no que cerce a evolução dos direitos de propriedade. Portanto, são empresas conceitualmente não capitalistas. No setor industrial, as empresas não capitalistas incluem tanto diretamente (empresas estatais, coletivos, cooperativas, empresas estatais de propriedade conjunta e corporações financiadas exclusivamente pelo Estado) quanto empresas indiretamente controladas pelo Estado.

Dito isto, o que diz as estatísticas do AEC?

O papel das empresas financiadas por Investimento Estrangeiro Direto (IEDs) é importante, mas não primordial, e vem declinando nos anos 2010. As EPs se multiplicaram e agora são de longe a maior categoria no setor industrial da China em termos de número de empresas. Em termos de ativos e produção, eles também vêm crescendo, mas, em média, ainda são muito pequenos: as EPs representam mais de 25% do capital industrial da China e 45% de sua produção.

No entanto, as empresas não capitalistas consolidaram sua posição dominante em termos de ativos. Sua participação na produção industrial tem declinado, mas a uma taxa progressivamente decrescente, o que parece ter levado até agora a uma estabilização substancial de cerca de 48% do total. Sua participação nos lucros e no emprego industrial também se estabilizou em cerca de 40%.

A elaboração elementar de outros dados da AEC mostra que o grau de capitalização das empresas industriais não capitalistas é maior que o das empresas financiadas por IDEs e mais do que o dobro do das empresas públicas. Desde meados dos anos 2000, sua produtividade do trabalho também é maior que o das empresas capitalistas nacionais e estrangeiras. Seu nível médio de produtividade também é saudável, embora não tão saudável quanto o das empresas estatais.

Esse desempenho geral das empresas industriais não capitalistas é resultado de tendências muito diferentes em seus dois subcomponentes.

A relação capital/trabalho de empresas controladas diretamente pelo Estado mais que dobra a média da indústria e continua a aumentar, pois essas empresas carregam o fardo estratégico de levar a acumulação de capital da China além dos limites que enfrentaria um ambiente capitalista comum. Por terem que carregar essa cruz para o bem de todo o país, as empresas diretamente controladas pelo Estado pagam um preço em termos de indicadores de produtividade e rentabilidade no nível da empresa.

Por outro lado, as joint ventures controladas indiretamente pelo Estado têm amplo grau de liberdade para perseguir objetivos orientados ao mercado. Portanto, elas tiveram um desempenho melhor (pelo menos no nível da empresa); têm investido pesado e sua taxa de crescimento da produtividade do trabalho tem sido a mais alta da indústria chinesa, à medida que superam as empresas estatais e capitalistas. Em termos de lucratividade, as joint ventures indiretamente controladas pelo Estado têm um desempenho melhor do que suas contrapartes diretamente controladas pelo Estado, embora inferiores às das empresas capitalistas que maximizam o lucro.

Os dados sobre o emprego total (industrial e outros) confirmam que a relevância quantitativa do componente capitalista da economia chinesa não deve ser exagerada. A proporção de trabalhadores urbanos empregados em empresas privadas nacionais e estrangeiras tem aumentado e, em 2016, constituiu mais de 1/3 do total. A parcela de trabalhadores rurais empregados por empresas estatais também aumentou, atingindo 16% em 2016. A proporção geral de trabalhadores que trabalham para empresas capitalistas tem aumentado constantemente, atingindo mais de 25% em 2018.

No entanto, mais de 70% dos trabalhadores na China ainda são autônomos ou empregados em empresas não capitalistas e organizações públicas. Portanto, a grande maioria dos trabalhadores chineses não é diretamente empregada pelos capitalistas (veja Gabriele A., 2020 [a ser publicado], “Enterprises, Industry And Innovation In The People’s Republic Of China – Questioning Socialism From Deng To The Trade And Tech War”, Springer).

A China não é uma sociedade socialista perfeita. Nem sequer, e por variados motivos, se tomada por outras dimensões, poderá não ser vista como socialista em um sentido completo. (levando em conta, por exemplo, os resultados ainda lentos dos esforços em andamento para combater a desigualdade e a degradação ambiental). Mas certamente não é capitalista.

*Alberto Gabriele é ex-economista da UNCTAD. Pesquisador independente.

* Elias Jabbour é professor de Relações Internacionais e de economia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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Comentários

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Luiz

30/04/2020 - 01h26

O capital é por construção especulativo, pode ser burro, não pode ser ingênuo. O mesmo se pode dizer da noção de investimento. O próprio oriente ensinou aos ianques que melhor do que invadir fronteiras é fazer a Coca Cola chegar primeiro. Acho que é nesse sentido que o texto fala em inocência, e até por isso é preciso destacar que a China não é o universo estanque, levado pela especulação a jogar na defensiva.

Wilton Cardoso

29/04/2020 - 16h46

Não entendo esse fervor de algumas esquerdas pela China. Deve ser desespero por conta da falência do campo progressista a nívvel mundial. Quanto à china ser modelo de algo já escrevi um artigo sobre isso: https://jornalggn.com.br/asia-oriente/a-china-e-o-modelo-a-seguir-2/

Minha ideia de capitalismo é outra, mais próxima da crítica do valor. Na antiga URSS e China comunista, assim como na Cuba atual, as categorias básicas do capital ainda existem: trabalho, valor, dinheiro, mercadoria, mesmo que não haja propriedade privada nem concorrência interna – embora estes países concorriam no mercado mundial. Então eram uma espécie de capitalismo de estado, pois mantinham a essência da produção de valor capitalista, principalmente a indústria, alterando apenas a esfera da circulação. Mas vamos fazer uma concessão e dizer que eram socialistas.

E um dos pilares do socialismo é a distribuição de renda e riqueza. Como a China pode ser socialista, então, mesmo que de forma imperfeita? É um país que explora o trabalho de forma desumana, com longas jornadas, baixa remuneração, ausência de direitos. O trabalhao precário é predominante e a distribuição de renda é péssima e tende a piorar, assim como a situação dos trabalhadores. Aliás, a exploração insana do trabalho é um dos pilares da competitividade chinesa.

A China é um país capitalista keynesiano-meercantilista, voltado para o modelo de exportação do tipo “empobreça seu vizinho”. Mas trata-se de um keynesianismo selvagem, em que o estado interfere fortemente na economia, mas sem a distribuição de renda do keynesianismo clássico do estado do bem estar social. Aí está o baixo custo chinês: mão de obra barata somada a baixos impostos, pois não há o custo do estado do bem estar. Nem sistema de saúde gratuito e universal a China tem. Se adoecer tem que pagar. Que socialismo é esse?

    Daniel

    17/05/2020 - 02h03

    Em crítica ao programa de Gotha Marx elabora que na fase inferior do comunismo (que hoje chamamos de Socialismo) haveria uma relação de trabalho com o estado e o pagamento seria com vouchers. O que ele descreve é sim muito semelhante ao que a URSS tinha após o fim da NEP. Portanto não entendo essa implicância em chamar o que a URSS tinha de “capitalismo de estado”, é um argumento que foge do socialismo científico e parte pro idealismo de Proudhon, Lassalle, Bakunin, etc.

    Então vc diz, “um dos pilares do socialismo é distribuição de riqueza”. Isso é uma simplificação extremamamente rude do socialismo científico. Nós temos muito trabalho à fazer, fora distribuição de riquezas: Superação da dependencia econômica, investimento em forças armadas para dissuadir o inimigo imperialista, desenvolvimento de forças produtivas para um nível de igual para igual com os imperialistas e combate à miséria extrema. Estes foram os que me lembrei só agora.

    Digo mais que há sim um Estado de bem estar social forte na China. É verdade que o setor público de saúde sofreu com as privatizações, possivelmente o maior erro o PCCh pós Deng. Não estudei o assunto à fundo. Mas leve em conta o sistema de pensões, a educação, e o grande programa de alívio de pobreza de Xi Jinping.
    https://www.pbssocal.org/programs/voices-from-the-frontline-chinas-war-on-poverty/

JOÃO LUIZ GARRUCINO

29/04/2020 - 10h40

???? Ele tenta provar que China não é capitalista e seria comunista? Ficou louco? Parece desinformado ou alienado da realidade…É capitalismo neoliberal sim e sem sindicatos e leis trabalhistas e nos tempos ainda antes de Getúlio há 60 anos, pois tudo funciona normal até sábados e domingos e sem direito algum para peãozada ou a bicharada como no livro Revolução dos Bichos, de George Orwell. A diferença que Guirardelli já disse seria apenas que China é praticamente o único pais que ainda pratica um capitalismo clássico inicial voltado a produção nas fábricas gerando empregos, renda e consumo, algo que o capitalismo financeiro do cassino global nem se preocupa mais como a Fieesp no Brasil o que tem levado ao sucateamento ou fim das indústrias nacionais afetando segurança e soberania nacionais dos povos inclusive do Brasil e quem sabe agora após crise do corona com até potências da Europa e EUA disputando importações de itens básicos da China como máscaras, respiradouros, remédios, etc, pois transformaram a China num canteiro de obras para faturarem mais produzindo a preço de banana para exportarem para EUA e Europa mas matando a galinha dos ovos de ouro ou as classe médias destes países agora provocando crise global o que iria acontecer mesmo sem o corona e apenas estão tentando mascarar a crise jogando a culpa apenas no corona. Vou postar alguns textos e vídeos a respeito da polêmica e até eu escrevi um recente sobre o Enigma da China que pouco se conhece no ocidente quanto a saber se Estado de fato regula economia de mercado no interesse da maioria da sociedade, como deveria ser mas nunca foi nem no Brasil e no ocidente, ou se Estado mera ditadura militar aplica modelo nacional desenvolvimentista como aplicado aqui pela ditadura militar quebrando Brasil com inflação de 100 % ao mês e levando anos para se recuperar e somente a partir do plano real começou a voltar ao normal mas nem voltou ainda.

chichano goncalvez

27/04/2020 - 16h16

Claro que os tempos hoje são outros e o campo é quase cidade ( tirei de uma musica missioneira- Pedro Ortasa), então muita gente foi para as cidades com o aumento do exodo rural, em muitos paises, e a China sofreu um processo , penso que muito grande, em direção a se espalhar pelo mundo coisa que não acontecia, e conforme vai se construindo as novas sociedades, existe um vai e volta de socialismo, por exemplo aqui no Brazil, teve o PT, com alguns membros no governo socialistas, outros capitalistas, isso faz uma mistura que quase nunca dá certo, parece que a China está conseguindo, muito progresso, sem deixar de ser socialista.Eu ainda prefiro o modo como se faz em Cuba, e seu espirito de solidariedade, é inigualavel, hoje estamos vendo, com suas brigadas de saude, espalhadas pelo mundo.O Socialismo salvando o planeta, mais uma vez.


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