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Anotações para um debate

Segunda-feira fria e nublada no Rio. Bom dia para escutar músicas francesas e beber vinho tinto. E também filosofar um pouco sobre o país, as eleições deste ano, discutir os princípios editoriais do blog. Como fazê-lo, contudo, sem recairmos em sectarismos ideológicos, em idiossincracias políticas ou partidárias, sem nos deixarmos levar pelo rancor, pelo preconceito, por […]

4 comentários
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Segunda-feira fria e nublada no Rio. Bom dia para escutar músicas francesas e beber vinho tinto.

E também filosofar um pouco sobre o país, as eleições deste ano, discutir os princípios editoriais do blog.

Como fazê-lo, contudo, sem recairmos em sectarismos ideológicos, em idiossincracias políticas ou partidárias, sem nos deixarmos levar pelo rancor, pelo preconceito, por vícios de pensamento, sem nos confundirmos com informações distorcidas?

Perguntas difíceis, quase insolúveis.

Mas as questões espinhosas não páram aí. Um vício que supera negativamente o sectarismo é a postura olímpica de estar acima do bem e do mal. Apontar a si mesmo como referência de isenção, imparcialidade, independência, me parece o supra-sumo da arrogância, e flerta com a megalomania.

Lembro da iniciativa de um blogueiro que hoje é figurão do Globo, de fazer um site onde ele punha em debate duas visões opostas sobre o mesmo tema. Exemplo: guerra entre Israel e Palestina. Ele publicava um artigo a favor de Israel e outro a favor dos Palestinos. Ele mesmo, o autor do site, não dava a sua opinião.

Um empreendimento muito democrático, aparentemente. Mas não deu certo. Porque o democratismo e a isenção ali revelaram-se rapidamente simplórios, artificiais e, por fim, hipócritas. O editor do site escolhia os temas e os autores arbitrariamente. Esse arbítrio fazia toda a diferença e denunciava facilmente a hipocrisia do site. Se o editor tivesse preferência por Israel, por exemplo, bastava escolher um autor fraco para atacar Israel e outro forte para defendê-lo.

Ao discutir política sempre nos deparamos com o problema, insolúvel, da isenção.

Ninguém é isento.

Por mais que o autor se esforce, desesperadamente, para sublimar todos os preconceitos e conceitos políticos herdados e aprendidos, ainda restarão aqueles que estão em seu próprio DNA, em sua criação, em sua carne, em sua família.

Qual a saída, então?

Um comentário que li, certa fez, dizia que a imprensa, mesmo sabendo ser impossível alcançar a isenção, deveria buscá-la, como um ideal. Um ideal inatingível, porém ainda assim importante como referência.

É uma resposta inteligente, mas não satisfatória, porque, na prática, a imprensa usará a “isenção” como se fosse um capital. Quanto mais “isento”, maior o poder de fogo para abater uma força política adversária.

A isenção se converte, então, em manobra, como se esticássemos uma corda apenas para lançar mais longe a flecha.

Um exemplo: no dia seguinte às denúncias contra Aécio Neves, na Folha, uma das primeiras reações dos internautas foi atribuí-las a um objetivo maquiavélico do jornal: recuperar um pouco a imagem de isenção, para obter maior poder bélico num ataque maciço contra Dilma.

A isenção enquanto “ideal”, portanto, também não cola muito.

O que nos resta, então? Como propor um debate político que seja respeitado pelas diferentes partes?

Aí eu suponho que entram dois elementos: o estético e o científico.

O estético é, naturalmente, a qualidade do texto, a clareza do raciocínio, a criatividade dos argumentos.

O científico engloba a natureza das fontes usadas numa informação, de um lado, e a coesão lógica de uma teoria.

É nisso que eu acredito.

Por isso, não me preocupo tanto com a isenção enquanto “aparência”. Até porque esta não é a tendência da comunicação moderna.

As pessoas pedem transparência. Querem saber de que lado você está, antes mesmo de lerem a sua opinião.

Isso não significa que perdoarão suas falhas de raciocínio ou a precariedade do seu texto.

Ao contrário, elas ligam tanto para isso que a defesa de uma ideia, de um projeto, de um candidato, se mal feita, pode ter efeito contrário.

Considerem essas premissas, portanto, quando analisarem os defeitos e vícios do blog. Não me importo de ser chamado de parcial, porque isso sempre vai acontecer, de uma forma ou de outra.

Concentro minhas preocupações na qualidade literária, na solidez do raciocínio e na confiabilidade das fontes.

Essas é a principal crítica, a meu ver, que fazemos à imprensa brasileira. Não queremos que ela pare de ser crítica ao governo.

Ao contrário, queremos que seja cada vez mais crítica, mas gostaríamos que houvesse mais transparência e mais sinceridade, de um lado, e mais confiabilidade em suas fontes, de outro.

Até hoje não engoli, por exemplo, o Jornal Nacional dar quase 10 minutos para Rubnei Quicoli, um ex-presidiário quase indigente, afirmar que estava “negociando” um empréstimo de oito bilhões de reais junto ao BNDES. Às vésperas da eleição presidencial de 2010…

Ora, quando isso acontece, o que nos causa repulsa não é o partidarismo descarado da Globo, mas a mentira, a tentativa desonesta de enganar as pessoas.

Schopenhauer falava sobre essa violência diabólica, pior que a violência física, que é anular o outro através da astúcia e da mentira, fazendo o outro encaminhar-se, voluntariamente, em direção a um abismo, a tomar decisões contra si mesmo.

Dito isso, passemos a um ponto delicado no debate político hoje, em especial no Rio de Janeiro, mas com reflexos em todo país: a prisão de 23 ativistas.

Sinto-me à vontade para falar do assunto porque o blog sempre se posicionou contra a violência em manifestações políticas.

Critiquei e critico a invasão de assembleias legislativas e câmaras de vereadores. A maioria dos parlamentares pode ser desonesta, mas havia ali alguns nos quais votei e os quais eu quero ver trabalhando por suas propostas.

O ultrarradicalismo político comete sempre os mesmos erros e os opostos se tocam. Volta e meia vemos o radical de extrema esquerda caminhando junto a seus antípodas conservadores. A imagem de Heloísa Helena, do PSOL, de braços erguidos, comemorando eufórica uma vitória qualquer sobre o governo, junto com vários caciques da reação, tornou-se emblemática dessa postura.

Entretanto, não se combate a violência política com brutalidade judicial, muito menos com massacre midiático.

O que faz a Globo, nesses dias, é uma campanha insidiosa – mais uma! – para envenenar o ambiente político, dividir os setores progressistas da sociedade e convocar os fantasmas de uma reação conservadora.

Cometeram-se erros e crimes por parte de ativistas mais radicais? Sim, houve e as imagens não negam.

As grandes cidades vivem à beira do colapso em termos de mobilidade urbana. Mas é absurdo combater o problema paralisando voluntariamente o trânsito, aumentando ainda mais o sofrimento da classe trabalhadora.

Por sorte, o povo brasileiro se mostrou bastante compreensivo e entendeu as manifestações como parte de um processo de aprofundamento da nossa democracia.

A reação conservadora, apesar de hoje estar sendo insuflada pela imprensa, não é tão forte. Concentra-se mais em São Paulo, onde a direita estabeleceu uma espetacular máquina midiática, dominando tudo: jornais locais, rádio e tv.

Esnobar a luta acumulada pelos partidos e pelos sindicatos não é, seguramente, o caminho para a transformação real do Brasil.

Não se transforma nada a partir do zero absoluto. Zero vezes zero é igual a zero. O jogo bruto das forças políticas de um país com 200 milhões de habitantes não é, evidentemente, para amadores.

Temos que levar os jovens que aspiram um lugar na política, que desejam lutar por um país melhor, a entender a vida como ela é, e não pretender, com uma ingenuidade falsa e oportunista, que a política real regrida aos padrões utópicos da juventude.

No mundo inteiro, a esquerda enfrenta o problema do radicalismo universitário. A doutrina teórica busca a pureza, e os debates acadêmicos costumam ser vencidos por neossofistas de voz forte. Socialistas de botequim não precisam beijar crianças.

É na prática, contudo, e somente na prática, que nasce a verdadeira política. E o que vemos? O povo nem sempre elege os fortes, os inteligentes, que possuem sólidos dogmas éticos. Preferem baixinhos, gordos, feios, de voz esganiçada.

A democracia nunca foi o governo dos melhores.

Robert Dahl, em Democracia e seus Críticos, explica que o maior inimigo da democracia, até hoje, é o que ele chama de “guardiania”, termo derivado da República de Platão. O governo dos guardiões, dos melhores, dos mais preparados.

O senso comum aceitaria, facilmente, a ideia de que os melhores devem governar.

Entretanto, a humanidade já passou por isso muitas vezes e a democracia, que não é o governo dos melhores, e sim da maioria, sempre se revelou infinitamente superior. Mais estável, mais dinâmica, mais livre.

A democracia, porém, assim como a liberdade, tem um preço. Um preço alto, que é um governo quase sempre medíocre, porque a maioria é medíocre e a maioria vota em seus iguais.

A corrupção também é um problema grave numa democracia, sobretudo num país ainda pouco acostumado às suas liberdades e garantias fundamentais.

Um corrupto consciente de seus direitos constitucionais pode se sentir seguro para desviar verba pública. Se eu for pego, pensa ele, terei direito a tantos recursos que já terei morrido ou minha condenação terá prescrito quando vier uma condenação efetiva. E o vexame moral será um preço baixo para os anos de riqueza e luxo que desfrutarei.

Uma segunda geração pensará igual? Ao testemunhar a vergonha dos velhos que se corromperam, dotado de um instrumental político mais sofisticado, um indivíduo mais jovem irá satisfazer suas ambições de outra forma? Sim, possivelmente.

A democracia amadurece paralelamente às gerações que ela produz.

Isso vale também para tudo, para o crime, para a violência, para o radicalismo político.

Ainda sofremos com as gerações de crianças e jovens que abandonamos nos anos 80 e 90, por ocasião da terrível crise econômica e social que vivemos. Gerações destruídas, marginalizadas, criminalizadas.

Outro dia um amigo veio me dizer que a esquerda tinha que abandonar a teoria de que a pobreza gera violência.

Ora, as coisas não são assim tão simples. A pobreza e o desemprego certamente não contribuem para a paz social.

Houve um tempo em que as favelas do Rio eram ainda mais pobres, e não havia violência. Mas havia também espaço físico para cultivo de hortas de subsistência. A baixa densidade demográfica e a existência de matas e córregos criavam um ambiente mais limpo e mais agradável.

Há tantos estudos sobre isso! Desigualdade, expectativas, racismo (oculto ou exposto). Tudo reflete nas estatísticas de violência.

Mas está provado que um razoável estado de bem estar social reduz sensivelmente o nível da violência urbana.

Um outro ponto essencial para o nosso debate, quiçá determinante, é a questão ideológica.

A esquerda brasileira, em sua esmagadora maioria, assumiu-se profundamente democrática. Alguns partidos ainda sonham com um mundo socialista ou comunista, mas jogaram a utopia para um futuro distante o suficiente para lhes dar tempo de solucionar todos os dilemas entre a liberdade, a propriedade e a razão coletiva.

A tentativa do segmento conservador de criar um fantasma socialista autoritário alimenta debates nervosos, mas periféricos, nas redes sociais. E, no entanto, apesar de irrelevante do ponto-de-vista eleitoral, o debate consome uma grande quantidade de energia. Há uma razão para isso, naturalmente. O debate sobre utopias, mesmo distantes, mobiliza desejos bem próximos. E desejos são a principal energia dos homens.

Desejos geram vida, desejos matam, desejos dão votos.

A ideia de verão para Charles Bukowski.

A ideia de verão para Charles Bukowski.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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marco

01/08/2014 - 14h54

Pois ao respeito de sua censura a um comentário que fiz,referente à matéria exposta,e que o sr. diz não ter visto e não te-lo censurado,quero conforta-lo dizendo que hoje,01,08.2014,também fui censurado pelo C.Afiada.Não foi a primeira vez que isto ocorreu e continuei acessando-os,embalde os recados para não mais faze-lo,porquanto o que me interesso ali,são as matérias e não a opinião dos GENIAIS EDITORES que ali trabalham.Quanto aos meus comentários,os sei pouco brilhantes,mas são meus e por isto,gosto deles.Quanto à sua censura,ocorreu,mesmo que não a tenha visto,mas afirmo que o sr.não está só!Tem bastantes partidários do NÃO VI,NÃO SEI,portanto,vá pra…

marco

29/07/2014 - 00h48

Pois fiz um chato comentário sobre a matéria,mas não fui brindado com sua publicação.Desculpem minha ousadia.Não o farei mais.Saudações.Era um comentário chato mesmo e eu mereço!…

    Miguel

    29/07/2014 - 06h50

    Não vi Marco. Conferi agora na caixa de Spam. Também não o censurei.

Liana Carvalho Santos

28/07/2014 - 23h25

E ler Buckowski?


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