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Deus e o Diabo na terra do sol

Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho Esta é uma história sobre direitos. Ou, melhor: sobre a falta deles. As ações aqui narradas se passaram na Tijuca, tradicional bairro do Rio de Janeiro, mas talvez tenham acontecido também perto de você, no bairro onde você mora ou trabalha. É semana de Natal, as ruas cheias […]

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Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho

Esta é uma história sobre direitos. Ou, melhor: sobre a falta deles.

As ações aqui narradas se passaram na Tijuca, tradicional bairro do Rio de Janeiro, mas talvez tenham acontecido também perto de você, no bairro onde você mora ou trabalha.

É semana de Natal, as ruas cheias de gente, as lojas com filas gigantes, as pessoas atrás dos objetos que simbolizem o tão falado “espírito natalino”.

Na porta de um shopping do bairro, seis meninos, com idades entre oito e treze anos, são parados por dois policiais. Todos negros. Alguns dos meninos sem camisa, outros sem chinelos.

Pessoas se aglomeram em volta dos meninos e dos policiais, fazendo parecer que um terrível crime houvesse sido cometido ali, no entanto, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo.

A alegação dos policiais para deter os meninos: denúncia de furto.

Nenhum flagrante. Nenhuma testemunha.

A palavra dos meninos: “ninguém roubou nada, não”.

A resposta policial: “eles estão sem documento e sem dinheiro. Vão para o abrigo”.

Tudo ocorre em longos minutos, talvez horas. Pessoas vem e vão, curiosas. Algumas param e xingam os garotos. “Tem que prender! Se deixar soltos vão assaltar!”

Todos são culpados, até que se prove o contrário.

Exceto quando não tem ninguém para provar o contrário. Então são apenas culpados.

Qualquer pessoa que para em frente a eles logo diz que viu um ou outro “furtando alguém na Saens Peña”. Quando tais pessoas são solicitadas a depor formalmente, o discurso muda: “ele estava tentando roubar. Mas, se deixar solto, daqui a pouco rouba mesmo”.

Se eu não estivesse presenciando tudo com meus próprios olhos, diria que era ficção. Cena de filme, bem roteirizada. Os heróis e os vilões para o senso comum da sociedade atual.

Busquei testemunhas.

Uma mulher, por volta de 30 anos, dizia ter presenciado tudo desde o começo: “eles estavam andando normalmente, só correram quando a polícia foi atrás deles. Mas não vi tentarem roubar ninguém, não”.

Não duvidei que ela estivesse falando a verdade.

O conselheiro tutelar, que chegou quase uma hora depois da denúncia, para resolver qual seria o destino dos meninos: “eles disseram que não estavam fazendo nada de mais. Acredito que não mesmo, mas é complicado. Já acompanhei pelo menos dois deles em casos de furto”.

Não duvidei que ele estivesse falando a verdade.

O conselheiro conversa com os meninos. Com os policiais. Decisão tomada: nada de abrigo, os meninos devem voltar para suas casas.

Quais casas?

Segundo o conselheiro tutelar, um deles mora na Comunidade do Metrô, na Mangueira; outro, no bairro do Castelo; outros, no Morro do Salgueiro.

As famílias de pelo menos dois deles (os mais novos, de oito e dez anos) já é conhecida pelo conselho tutelar. Um mora com a mãe e mais onze irmãos; outro seria levado para a tia, que sofre com um marido alcoólatra.

Essa parece ser uma cena qualquer, que acontece todos os dias nas grandes metrópoles. Ela apenas torna-se mais evidente e repetitiva nessas épocas onde a sanha consumista aparece mais forte, como natal e ano novo.

Como um dos meninos detidos disse, “ninguém vai comprar presente pra mim”.

O fato é que, por mais corriqueira ou surreal que a cena tenha parecido, ela evidencia detalhes da sociedade que talvez estejamos deixando passar despercebidos.

É muito fácil e cômodo tomarmos o caso com viés maniqueísta, escolhendo entre o lado bom ou o mau. Ou você acredita nos meninos, que dizem não ter feito absolutamente nada, ou acredita nas pessoas que dizem tê-los visto tentar furtar outras pessoas no caminho até o shopping.

Absolvição ou condenação.

Mas o que existe entre essas duas possibilidades?

É minimamente humano negar a falta de assistência às famílias dessas crianças, a falta de incentivo à educação, a falta de políticas públicas que excluam esses meninos das margens da sociedade e os incluam no convívio social?

Como o próprio conselheiro tutelar que acompanhava o caso disse, “o problema é muito maior do que parece. O abrigo não dá conta, a cadeia não dá conta. Enquanto a gente não entender como e por quê essas crianças estão na rua, nada vai mudar”.

A história esquecida

Quando as manchetes estampam como sujeitos da frases menores, parece que sempre há uma personagem esquecida na história.

Até agora, sequer foi mencionado como os meninos reagiram às ações de que foram alvos.

Bom, tudo que vi da parte deles foi indignação e medo.

Indignação com as pessoas que por ali passavam e paravam para destilar todo seu ódio. E eles não ouviam calados, obviamente.

Medo do abrigo, do que os policiais poderiam fazer com eles dentro do carro que os tiraria dali.

O mais novo dos detidos, de oito anos, chegou a urinar nas próprias calças quando, antes de o conselheiro tutelar chegar, foi informado de que seria levado para o abrigo. Segundo ele, lá eles passam fome e apanham.

Durante o longo período entre a abordagem policial e a decisão do conselheiro tutelar, foi como presenciar o estado mais vil que a natureza humana pode chegar. Eram farpas trocadas. Deus e o diabo na terra do sol.

E, certamente, enquanto não entendermos quem, de fato, é o inimigo, nada vai mudar. Vamos continuar temendo e criminalizando crianças por serem pobres e negras, por andarem livremente nas “nossas” ruas.

Como bem indagou Renato Russo, na música “Soldados”: “quem é o inimigo? Quem é você?”.

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Comentários

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Sônia Bulhões

27/12/2015 - 15h49

Os coxinhas, psicopatas, burros, fascistas perderam o rumo. Andam infestando os blogs sujos … Façam-me o favor de retornarem aos seus blogs limpinhos. Em tempo, busquem a tradução literal para fascista, burro, psicopata. Vade retro satanás e para sempre. O lugar de vocês, seus troll’s duma figa é no blog do R azevedo, no do jabour, em todos aqueles lá nos quais vocês se identificam e contribuirão com a fantástica retórica do disco quebrado que repete, repete feito papagaio de pirata. Boa viagem só de ida.

Dilênia Valença

23/12/2015 - 01h25

Deus nos perdoe por nossa indiferença tanta insensibilidade ….

Gerino Alves Filho

23/12/2015 - 01h09

Vamos ouvir e prestar atenção na música de Assis Valente: – “Eu pensei que todo fosse filho de Papai Noel…” Feita numa Noite de Natal de um depressivo, sozinho, sentindo-se abandonado, numa pensão em Niterói, como um presságio de suicídio que não demoraria muito. Música triste, cantada por todos, sem que se procure entender a letra. Acho linda a melodia, mas é triste.

Steiger

22/12/2015 - 20h15

Afinal, você comprou presente para o menino ou pegou pra criar?

    Marco Aurélio Godoy

    23/12/2015 - 08h51

    Quanta ignorância e falta de sensibilidade. Reflita!

Maria Fernanda

22/12/2015 - 20h28

Excelente texto!


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