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Quem tem Medo de Travesti: um espetáculo humano em tempos de barbárie

Quem cartaz no Poeira, ‘Quem tem medo de travesti’ é um espetáculo indispensável no Brasil de 2019. Enquanto assistimos direitos serem retirados e o ódio a minorias crescer, não podemos deixar que as travestis agredidas e assassinadas sejam apenas estatísticas e nem mesmo assistir calados à marginalização daquelas que sobrevivem e lutam por seu espaço num grito silenciado pela cultura do preconceito.

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Foto: Neyvicton Trindade
Foto: Neyvicton Trindade

Uma travesti morreu assassinada a facadas. Uma travesti foi encontrada morta nesta quarta-feira. Uma travesti foi brutalmente assassinada e linchada na última madrugada. Uma travesti foi espancada sob gritos de ódio na manhã de ontem. Expulsa de casa pelos pais, uma travesti foi encontrada morta na rua, mas você não ficou sabendo. Sob gritos de ódio, uma travesti foi alvejada por tiros e morreu.

Todos os dias, uma travesti é agredida no Brasil. Às vezes, morrem. Todos os dias, transformamos isso em estatística e dizemos, sobre estas mortes e agressões, números tristes – quando tristes dizemos. Mas nunca, em nenhum destes dias, paramos e olhamos para a vida destas pessoas que sofrem o horror da marginalização social, econômica e geopolítica.

“Travesti não tem classe social”, diz uma fala da peça “Quem tem medo de Travesti”, em cartaz no Teatro Poeira até o dia 24 de julho. Travesti não é rico, e por eles são ignoradas; Travesti não é classe média, e por eles são temidas; Travesti não é pobre, e por eles são odiadas. Travesti não pertence a nenhum grupo social que ocupa as ruas e nelas as marginalizam. “Travesti é um Centauro urbano”, uma mutação suis generis que as fazem parir elas mesmas, diz um outro trecho.

Assim, palavra a palavra, a dramaturgia de QTMT dispara à plateia, como balas, falas que cortam e sangram. Expõem os espectadores àquilo que, por vezes, todos escolhemos ignorar. É um grande ensaio sobre as dores, o medo, e – sem temer o trocadilho – as delícias de ser uma travesti. Dores, sangue, amor, arte, comédia, histórias, cotidiano, o despertar e o adormecer. Em cada personagem, somos apresentados ao lado real das estatísticas que nos consternam.

Ao evoluir na dramaturgia, entre o humor e o drama, os autores Silvero Pereira (BRTrans) e Jezebel De Carli, dão chance a quem assiste de se ver naqueles corpos que cotidianamente são rejeitados, de forma cruel e, muitas vezes, sutil. Ao conhecer as tragédias pessoais das vidas daquelas travestis, acessamos um lugar diferente no diálogo experimental que o palco do Poeira e o espetáculo possibilitam. A direção minuciosa, também da dupla Silvero e Jezebel De Carli, que aborda com exatidão o que cada artista ali tem a oferecer (em corpo e em alma), nos transporta, ao apagar das luzes, a um universo completamente distante de quem não viveu na pele aquelas experiencias.

É um espetáculo lindo, comovente na medida certa, divertido e bem-humorado, correlato às vidas daquelas que estão no palco, e em meio a história de lutas e lágrimas, é deslumbrante em seus números musicais e performáticos e cenas que narram as experiências colhidas pela dramaturgia, de histórias e personagens reais. Há muito tempo o teatro não me tocava tanto. Do coletivo As Travestidas, de onde já saíram Silvero Pereira e Jesuíta Barbosa, o espetáculo é arrebatador.

Para além da tragédia da morte, do humor cotidiano ou do drama da rejeição, o texto e as atuações da peça falam, sobremaneira, sobre uma palavra já apresentada no título: o medo. Não se trata apenas de uma costura de recortes de histórias tristes e divertidas ao mesmo tempo, muito embora seja isso também. Trata-se do olhar microscópico sobre o que não se sabe e sobre o que se especula saber: afinal de contas, por que o medo? Vejam, olhem, podem tocar se quiser, não precisa ter medo. Quem tem medo de travesti? Por que temer travesti?

Ao som de uma trilha sonora impecável, que nos leva a performances incríveis, e vestidas num figurino que as desnudam e possibilitam as tantas histórias narradas, as travestis do coletivo As Travestidas (Ceará) dão corpo a relatos reais de agressão, das primeiras experiências sexuais, das primeiras implicâncias, das rejeições precoces, da primeira vez que quiseram botar um vestido e se assumirem vestidas como mulheres. Traçam um delicado contorno à complexa relação da travesti com o corpo e os adornos e delas com a arte e o amor.

Foto: Neyvicton Trindade

A intertextualidade presente é forte ao vermos aqueles corpos desnudos entregues ao espetáculo e à plateia. No olhar de cada travesti no palco, vemos verdade porque sabemos ser verdade terem vivido o que narram, seja de forma literal ou paralela. Dessa forma, dialoga também com quem assiste e tem experiências semelhantes, e se apresenta na potência máxima da arte que é transformar quem é atingido por ela de alguma forma.

Quem tem medo de travesti é um espetáculo necessário, indispensável no Brasil de 2019. Enquanto assistimos direitos serem retirados e o ódio a minorias crescer, não podemos deixar que as travestis agredidas e assassinadas sejam apenas estatísticas e nem mesmo assistir calados à marginalização daquelas que sobrevivem e lutam por seu espaço num grito silenciado pela cultura do preconceito.

O espetáculo, que foi viabilizado pela produção impecável da Quintal Rio (Valencia Losada e Veronica Prates) e pelo coletivo As Travestidas, por meio de financiamento coletivo, é um respiro humano em tempos de barbárie. É importante e indispensável não somente por tudo do que trata em cena, mas pela resistência que representa pela própria ousadia de sobreviver na arte, quando ela é atacada e demonizada da maneira que temos assistido. É também um abraço do e ao Teatro Poeira, que perdeu patrocínios e tem sofrido ataques sistemáticos, mas escolheu resistir em nome, pura e simplesmente, de seu objetivo maior: o teatro.

Serviço:

Quem Tem Medo de Travesti

Onde? Teatro Poeira, em Botafogo

Quanto? De R$30 a R$60

Quando? Terças e quartas, até 24 de julho, às 21h

Idealização: Silvero Pereira
Direção e dramaturgia: Jezebel De Carli e Silvero Pereira 
Elenco: Mulher Barbada, Denis Lacerda, Patrícia Dawson, 
Diego Salvador, Ítalo Lopes e Verònica Valenttino.
Pesquisa Musical: Silvero Pereira
Preparação Vocal: Angela Moura
Música Original: Verónica Valenttino
Figurinos e adereços: Antônio Rabadan
Cenografia: Elaine Nascimento
Iluminação: Ricardo Vivian
Operador de Som: Fábio Vieira
Projeto gráfico: Cubiculo (Fabio Arruda e Rodrigo Bleque)
Fotos divulgação: Leonardo Pequiar
Assessora de imprensa: Factoria Comunicação (Vanessa Cardoso e Pedro Neves)
Realização: Coletivo Artístico As Travestidas | Quintal Produções

Administração e Produção: Quintal Produções
Direção Geral: Verônica Prates
Coordenação Artística: Valencia Losada
Produção Executiva: Thiago Miyamoto e Nely Coelho

Duração: 60 minutos

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Guto Alves

Guto Alves, 27, é jornalista e produtor no Rio de Janeiro Twitter: @gutoalvesp

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