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Patentes: o intrincado caso do dolutegravir

Principal medicamento utilizado no Brasil contra o HIV já pode ser produzido em parceria entre laboratório público e empresa brasileira. Mas, em busca do lucro máximo, Big Pharma bloqueia esta autonomia. O SUS paga a conta Por Redação Outras Palavras — O modus operandi da indústria farmacêutica em relação a patentes e à mercantilização de […]

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Principal medicamento utilizado no Brasil contra o HIV já pode ser produzido em parceria entre laboratório público e empresa brasileira. Mas, em busca do lucro máximo, Big Pharma bloqueia esta autonomia. O SUS paga a conta

Por Redação

Outras Palavras — O modus operandi da indústria farmacêutica em relação a patentes e à mercantilização de medicamentos essenciais à vida fica clara na denúncia feita pelo artigo que publicamos hoje no Outra Saúde. O caso diz respeito ao dolutegravir, remédio fundamental para o tratamento de HIV/aids distribuído no SUS a cerca de 460 mil pessoas. Garantir sua incorporação no sistema de saúde, em 2017, não foi algo trivial. Deu-se graças à luta de pessoas que vivem com o HIV e entidades como o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), ligado à Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) – às quais são ligados os autores do artigo. Mas eles alertam: a distribuição do dolutegravir corre riscos.

Desde a chegada do medicamento ao Brasil, essas entidades eram contra os pedidos de patentes feitos ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Sustentavam que “o patenteamento desse medicamento violaria não só o direito fundamental à saúde, mas também a própria Lei da Propriedade Industrial (LPI), já que não cumpria com os requisitos de patenteabilidade”. Infelizmente, em 2020, com uma mudança brusca no posicionamento do INPI, a patente foi concedida à ViiV Healthcare Company (uma joint venture entre a GSK e a Pfizer criada em 2009) – mesmo sem a anuência da Anvisa.

A luta contra essa e outras patentes teve uma vitória em 2021. O STF julgou procedente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que bloqueava a extensão do direito de propriedade intelectual para além de vinte anos. Em consequência, caducaram ou tiveram sua vigência reduzida as patentes impostas a 4 mil produtos ligados à área da Saúde. A do dolutegravir foi reduzida em quatro anos. A ViiV Healthcare, no entanto, encontrou uma maneira esperta de manter os lucros, e firmou uma “aliança estratégica” com a Farmanguinhos/Fiocruz para transferência de tecnologia até 2025 – quando vence a patente. Os autores do artigo alertam para a falta de transparência nessa parceria, que impede que se analise se é de fato boa para o SUS e para as pessoas que vivem com HIV no Brasil.

A “aliança estratégica” não é a única a garantir o dolutegravir no país. No período anterior à concessão da patente, firmou-se uma Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco Governador Miguel Arraes (Lafepe) e a empresa brasileira Blanver Farmoquímica e Farmacêutica S.A. Essa PDP garante a distribuição do dolutegravir no Brasil, mas está sob ataque: a ViiV busca, hoje, impedir que o ministério da Saúde compre o medicamento por essa via. Deseja ter o monopólio de vendas – algo que, além de encarecer o preço, pode ser perigoso caso a empresa não dê conta da demanda.

A patente indevida e as tentativas de monopólio da ViiV são objeto de debate do artigo que publicamos hoje. Sobretudo, os autores defendem que é preciso que o tema seja exposto e discutido publicamente, pois diz respeito à vida de centenas de milhares de brasileiros. “Precisamos denunciar o funcionamento neocolonial desse sistema e exigir que o direito à saúde não seja mais tratado como uma mercadoria em nosso país”, encerram. Fique com o artigo

Por Felipe Carvalho Borges da Fonseca, Carolinne Thays Scopel, Susana Rodrigues Cavalcanti Van Der Ploeg, Maria Clara Pfeiffer Noronha e Alan Rossi Silva

Um novo ano se inicia. Com a eleição do novo governo, novas oportunidades se abrem e novas esperanças surgem no coração de milhões de brasileiros e brasileiras. Em especial, no campo da saúde, não há quem não esteja ansioso para deixar para trás os traumas do passado e continuar avançando rumo a um futuro melhor. Novos ventos são trazidos pela nova composição do ministério da Saúde, que já fala, mais uma vez, sobre o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a retomada do protagonismo no enfrentamento de diversas doenças que afligem nossa população, inclusive o HIV/Aids.

Por outro lado, estão cada vez mais evidentes as limitações orçamentárias impostas nos últimos anos, as quais, juntamente com um comportamento predatório das empresas farmacêuticas, colocam em risco o princípio mais fundamental do SUS: a universalidade do tratamento e outras ações de saúde. Nesse sentido, o caso do medicamento dolutegravir, atualmente o mais usado no país para tratamento de HIV/Aids, é bastante emblemático.

Mesmo repletos de esperanças justificadas, continuamos vivendo em um país da periferia do capitalismo. Por isso, a saúde de nossa população continua sob a ameaça constante de uma lógica neocolonial, que visa a preservar estratégias de concentração de poder por parte de agentes do mercado e inviabiliza a realização de direitos fundamentais. Entre outras coisas, não podemos nos esquecer dos efeitos perversos do sistema de patentes e da perigosa atuação da indústria farmacêutica transnacional em nosso território, amplamente marcada por abuso de poder econômico.

Nesse sentido, entender em profundidade o caso do medicamento dolutegravir é crucial para compreendermos as estratégias de grandes laboratórios farmacêuticos e, principalmente, como nós, da sociedade civil, podemos nos opor a elas. Afinal, o que está em jogo não é nada menos do que a vida do nosso povo e a soberania do nosso país.

O dolutegravir é um medicamento fundamental no combate ao HIV/Aids e, em 2019, foi recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como tratamento de primeira e segunda linha para todas as populações. Desde 2017, esse medicamento é distribuído pelo SUS e, de acordo com o Ministério da Saúde, atualmente, mais de 460 mil pessoas fazem uso desse medicamento no Brasil, o que o torna o medicamento mais utilizado no âmbito da política de HIV/Aids. Ao contrário do que pode parecer, isso não é nada trivial e foi conquistado com muita mobilização e luta por parte da sociedade civil brasileira.

Em 2015, por exemplo, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), parte da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), já enfrentava todas as resistências e defendia intransigentemente a incorporação e o acesso universal ao dolutegravir no Brasil. Contudo, desde o início, ficou evidente como esse seria mais um doloroso exemplo de como o sistema de patentes e a ambição desmedida de laboratórios transnacionais vêm marcando a história das pessoas que vivem com HIV/Aids, não só aqui, mas em todo o mundo.

Tendo em vista os preços abusivos possibilitados pelo sistema de patentes, bem como o impedimento de adquirir versões genéricas no mercado internacional, o poder público se recusava a oferecer esse medicamento e, com isso, ameaçava diretamente a vida e o direito à saúde de milhares de pessoas. Somente em 2016, depois de muita pressão das pessoas vivendo com HIV/Aids e graças ao trabalho técnico da sociedade civil, foi possível reverter esse quadro, reduzir os preços impostos pela indústria transnacional e garantir a incorporação do dolutegravir no SUS.

Mesmo assim, a luta continuou e as mobilizações não poderiam parar. Apesar da redução de preços alcançada, os preços praticados no país continuavam altíssimos e ameaçavam diretamente a sustentabilidade das políticas públicas do SUS. Por isso, o GTPI continuou lutando duramente contra os pedidos de patente relacionados ao dolutegravir e apresentou diversos subsídios técnicos ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), demonstrando como o patenteamento desse medicamento violaria não só o direito fundamental à saúde, mas também a própria Lei da Propriedade Industrial (LPI), já que não cumpria com os requisitos de patenteabilidade.

Em 2020, entretanto, sem a anuência material da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — o que violava o art. 229-C, da LPI — e depois de o INPI mudar drasticamente o seu posicionamento, uma patente relacionada a esse medicamento foi equivocadamente concedida, passando a gerar efeitos extremamente negativos para a saúde da população e para o já debilitado orçamento do SUS. Por isso, com o intuito de usar todos os recursos possíveis para defender o direito à saúde, o GTPI iniciou um processo administrativo no âmbito do próprio INPI, voltado para anular a concessão imerecida desta patente. Esse processo, no entanto, continua em tramitação até hoje.

Paralelamente, como uma forma de atenuar os efeitos negativos das patentes neste e em milhares de outros casos, o GTPI, representado pela ABIA, também atuou firmemente como amicus curiae (“amigo da corte”) no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.529. Esse processo ocorreu no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e buscava declarar a inconstitucionalidade da extensão do prazo de vigência das patentes para além dos 20 anos no Brasil. No final das contas, em uma grande vitória do interesse público, o STF julgou a ação procedente em maio de 2021 e determinou a extinção ou a redução do prazo de vigência de quase 4 mil patentes relacionadas à área da saúde — afetando, inclusive, a patente do dolutegravir, cujo prazo foi reduzido em mais de 4 anos!

Mesmo com esse resultado positivo, contudo, a patente indevida do dolutegravir continuou em vigor e, até o presente momento, segue colocando em risco a sustentabilidade das políticas públicas de saúde em nosso país. Aliás, para piorar, as titulares dessa patente, as empresas ViiV Healthcare Company (uma joint venture entre a GSK e a Pfizer criada em 2009) e a japonesa Shionogi & Co., Ltd., passaram a abusar dos poderes de seu monopólio indevido para impedir a fabricação e a distribuição da versão genérica deste medicamento no Brasil, o que poderia significar a economia de milhões de reais aos cofres públicos e a proteção da soberania sanitária do país.

A partir de uma verdadeira perseguição judicial (que está em segredo de justiça e não pode ser acompanhada pela sociedade civil), essas empresas estrangeiras estão fazendo de tudo para impedir que o Ministério da Saúde possa adquirir ainda que parte de seu estoque de dolutegravir da Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) formada entre o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco Governador Miguel Arraes (Lafepe) e a empresa brasileira Blanver Farmoquímica e Farmacêutica S.A.. Essa movimentação judicial acaba por salientar, ainda mais, o claro embate entre os direitos de propriedade intelectual e o direito à saúde em nosso país.

Diante desse cenário, no início de 2022, a empresa Blanver ajuizou uma ação judicial de nulidade contra a patente do dolutegravir e a luta contra esse monopólio imerecido ganhou mais um capítulo importante. Como não poderia deixar de ser, aproveitando todo o seu acúmulo em defesa do direito à saúde e do acesso a esse medicamento, novamente representado pela ABIA, o GTPI passou a atuar, como amicus curiae, também neste caso. Desde então, o GTPI acompanha esse processo de perto e já apresentou diversos subsídios técnicos ao juízo.

Além das batalhas em curso no âmbito do INPI e do poder judiciário, vale a pena mencionar que o GTPI, em 2022, também participou ativamente de uma audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o risco de desabastecimento do dolutegravir e ajudou a propagar a contundente recomendação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre o tema.

Nesse contexto, vale lembrar que, ainda em 2020, tentando extrair o máximo de benefícios de sua patente notoriamente frágil, as empresas detentoras do monopólio sobre este medicamento anunciaram uma “aliança estratégica” com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e, em um ato fortuito de generosidade, se disseram dispostas a transferir a tecnologia do dolutegravir para a instituição brasileira até 2025 — ano anterior à expiração da patente. No entanto, agora é justamente a hora de perguntar: no final das contas, essa aliança é “estratégica” para quem?

Afinal, estamos falando da transferência do principal antirretroviral no contexto brasileiro, de uma tecnologia que não deveria ter sido patenteada e cuja patente está sendo contestada de várias formas. Além disso, trata-se de uma tecnologia que, mesmo com todos os obstáculos, já está sendo produzida localmente — e por um preço mais baixo — pela parceria entre um laboratório público e uma empresa nacional. E, para completar, a tal transferência “estratégica” de tecnologia está prevista para ser concluída, coincidentemente, apenas no final do prazo de vigência da famigerada patente.

Na prática, o que vai acontecer se a patente do dolutegravir for anulada? Por causa dessa aliança estratégica, o Ministério da Saúde teria que continuar adquirindo parte do seu estoque da indústria transnacional e pagando mais caro por esse medicamento? A possibilidade de concessão de outras patentes relacionadas ao dolutegravir ou a combinação com outros medicamentos justificaria essa parceria? Esse não seria um caso claro para um licenciamento compulsório por interesse público, ainda mais agora que a Lei nº 14.200/2021 permitiu explicitamente o licenciamento compulsório de pedidos de patente?

Diante desses questionamentos, é mais do que normal que o GTPI, bem como qualquer outra pessoa ou organização comprometida com a defesa do direito à saúde, tivesse, no mínimo, o interesse em examinar atentamente os termos dessa aliança. Ocorre que, para a estupefação geral, o acesso a esse acordo foi definido como sigiloso e o acesso ao seu conteúdo foi reiteradamente negado por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Depois de a Fiocruz/Farmanguinhos ter negado diversas vezes o acesso a qualquer parte deste documento, a Controladoria-Geral da União (CGU), em última instância, determinou que a entidade compartilhasse, pelo menos, todas as informações não sigilosas relativas à aliança estratégica. Todavia, distorcendo a utilização desta prerrogativa, a instituição escolheu compartilhar apenas informações genéricas e insuficientes, as quais já se encontravam amplamente divulgadas na mídia.

Com efeito, é possível resumir as estratégias adotadas pelos grandes laboratórios farmacêuticos no caso do dolutegravir em 5 atos principais: (i) depósito de pedidos de patente que não merecem ser concedidos; (ii) fixação de altos preços por um medicamento de uso massivo por pessoas que vivem com HIV, mesmo antes da concessão de qualquer patente (abusando do monopólio de fato garantido pelo sistema de propriedade intelectual); (iii) deferimento de uma patente em um processo em que, com um parecer contraditório e frágil, o INPI mudou drasticamente sua análise, contrariou a posição da Anvisa e concedeu uma patente notoriamente imerecida; (iv) medidas judiciais e ameaças voltadas à supressão de qualquer iniciativa de produção genérica do medicamento, utilizando-se de monopólio patentário indevido; e, (v) transferência da tecnologia do medicamento para um laboratório público nacional, sob condições sigilosas e quase no final da vigência da patente.

As estratégias dessas empresas devem ser cada vez mais expostas, uma vez que elas estão agressivamente buscando retirar fornecedores alternativos do mercado e controlar o registro de combinações relevantes para o protocolo de tratamento. Precisamos ter em mente que a luta pelo acesso ao dolutegravir está longe de acabar e que este não é o único caso em que essas estratégias são utilizadas. Esse é só mais um caso em que o sistema de patentes tem sido habilmente instrumentalizado para proteger interesses de agentes transnacionais e colocar em risco a vida da nossa população.

Daqui pra frente, além de nos atentarmos aos outros pedidos de patente relacionados ao dolutegravir e continuar lutando pela anulação da patente que já foi concedida, precisamos denunciar o funcionamento neocolonial desse sistema e exigir que o direito à saúde não seja mais tratado como uma mercadoria em nosso país.

Felipe Carvalho Borges da Fonseca é mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Carolinne Thays Scopel é doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e consultora farmacêutica da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Susana Rodrigues Cavalcanti Van Der Ploeg é doutoranda em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Maria Clara Pfeiffer Noronha é mestranda em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assistente de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Alan Rossi Silva é doutorando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

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